Quilombolas de Pedro Cubas mantém viva a procissão noturna que encerra a quaresma
[12/04/2010 12:24]
A Recomendação das Almas, procissão noturna que percorre mais de 20 km, é parte do patrimônio cultural quilombola, cuja tradição é mantida pela comunidade de Pedro Cubas, em Eldorado, no Vale do Ribeira. A equipe do ISA registrou a manifestação cultural.
Todos os anos, durante a semana santa, na virada da noite da sexta-feira da paixão para o sábado de aleluia, o cortejo fúnebre conhecido como Recomendação das Almas, sai do quilombo de Pedro Cubas, única comunidade quilombola da região que ainda pratica o ritual, e percorre um trecho de mais de 20 quilômetros entoando cânticos e orações. Foi assim na madrugada do sábado de aleluia, no último dia 4 de abril.
"Bendito louvado seja
Da morte paixão de Cristo
Acordai irmão das almas
Acordai se estão dormindo"
(Oração cantada da Recomendação das Almas em Pedro Cubas)
A equipe do ISA acompanhou e registrou a celebração. O material etnográfico e áudio-visual resultante integra o Projeto de Inventário de Referências Culturais Quilombolas, em elaboração conjunta com agentes culturais quilombolas. O projeto é patrocinado pela Petrobrás, e realizado em parceria com Aecid (Cooperação Espanhola), AIN (Ajuda da Igreja da Noruega), Secretaria Estadual de Cultura, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Núcleo Oikos e Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras).
O projeto busca o levantamento dos bens culturais imateriais e materiais de 16 comunidades quilombolas no Vale do Ribeira, aplicando a metodologia desenvolvida pelo Iphan, que reconhece cinco categorias do patrimônio cultural: “celebrações”; “ofícios e modos de fazer”; “formas de expressão”; “lugares”; e “edificações”. O inventário consiste na primeira etapa de um plano de salvaguarda de bens culturais, que pode culminar no registro do bem cultural nos cadernos do Iphan. O trabalho junto aos agentes culturais quilombolas deverá resultar na seleção de macro-categorias da cultura local, que contemplem as expressões culturais das comunidades.
Salvaguardar tradições culturais implica gerar internamente nas comunidades a consciência sobre a importância do objeto da salvaguarda. Com a participação efetiva dos agentes culturais e a mobilização das comunidades em qualificar suas formas culturais, o projeto alcança aquilo que constitui um de seus principais objetivos: a valorização do patrimônio cultural quilombola pelos próprios quilombolas.
A Recomendação das Almas de Pedro Cubas
Procissões fúnebres, realizadas a noite, com o objetivo de encaminhar as almas dos mortos à luz divina e às portas do céu já foram registradas em Portugal e em diversos estados brasileiros, de norte a sul, sob diferentes denominações: recomendação (ou recomenda) das almas; encomendação das almas; alimentação das almas; folia das almas; procissão das almas; sete passos; procissão de penitência.
Não se trata, portanto, de uma marca cultural particularmente quilombola. A referência desta expressão religiosa é católica, o que se percebe nas evocações recorrentes a Deus, Nossa Senhora, São Miguel, Santo Antônio de Lisboa. Em Pedro Cubas, elementos externos à tradição católica aparecem associados ao ritual, como a infusão em aguardente de guiné, utilizada para benzimento e cura, e personagens da literatura oral brasileira que são apropriados regionalmente de modo bastante particular. A Recomendação das Almas e suas variantes expressam um arranjo criativo do catolicismo à moda brasileira, encontrado em comunidades rurais, resultante das relações históricas entre diferentes tradições religiosas colocadas em contato pelo contexto colonial.
A figura do “irmão das almas”, evocado nos cânticos da comunidade de Pedro Cubas, é referência em procissões fúnebres também no nordeste, como revela a obra de João Cabral de Melo Neto Morte e Vida Severina. Aos irmãos das almas cabe o trabalho de lavar, vestir, velar e enterrar o defunto. Embora calcado na tradição católica, a Recomendação das Almas parece suspender temporariamente certas oposições cristãs: vida e morte, corpo e alma, luz e sombra. E traz para a dimensão do mundo visível, entes normalmente invisíveis. Esta suspensão permite a comunicação entre vivos e mortos e possibilita a eficácia do ritual, que é fazer com que os vivos tragam à luz as almas das sombras, para que sejam aceitas no céu. Ao mesmo tempo em que se ora pelas almas dos mortos, os participantes do ritual buscam a redenção de suas próprias almas.
A caminhada é realizada ao longo da estrada que liga a comunidade ao Rio Ribeira de Iguape. Os participantes são seguidos pelas almas dos mortos, atraídos pelos cânticos e pelo som da matraca, instrumento feito de pequenos tacos de madeira. Vivos e mortos dividem o mesmo espaço, e caminham no escuro em busca da mesma coisa: a redenção de suas almas. “A luz que buscamos, buscamos em oração”, explica o capelão Antonio Jorge. Para o curandeiro e benzedor da comunidade, Adão, “andamos no escuro para não chamar atenção de certos espíritos”. É que neste momento, as almas tornam-se visíveis, mas deve-se evitar olhar para elas.
Almas seguem os fiéis
Os locais de parada para oração são encruzilhadas, taperas, casas de antigos moradores, locais significativos da estrada. Quando param, todos se posicionam na margem da estrada, deixando a passagem livre para as almas. O capelão Antonio Jorge toca então, vagarosamente, sua matraca e entoa cânticos e orações que são seguidos pelo coro agudo das cantadeiras.
A Recomendação das Almas é realizada somente na semana santa, período em que, não por acaso, morte e vida (ressurreição) de Cristo são simbolicamente revividas. A procissão pode ocorrer em uma, três, cinco ou sete noites, conforme decisão dos participantes. Porém, é na passagem da sexta-feira da paixão para o sábado da aleluia que o cortejo percorre o trecho completo, partindo da comunidade de Pedro Cubas até o cemitério do Batatal, próximo ao Rio Ribeira de Iguape. Os trajes devem ser nas cores branca e preta. Branco para manutenção da luz e apaziguamento das almas; preto simbolizando luto.
A garrafada preparada por Cacilda, anfitriã e cantadeira da Recomendação das Almas, é uma infusão em aguardente de raiz de guiné, arruda, alho e eventualmente chifre de boi moído. Utilizada para benzimento dos participantes, antes e depois do cortejo, a garrafada é também consumida ritualmente como bebida, em virtude das propriedades medicinais de seus ingredientes. As orações intercedem pelas almas do purgatório, da encruzilhada e todas aquelas que resultam de mortes acidentais: alma dos atirados, alma dos afogados, e alma dos ofendidos (morte causada por picada e cobra). Ao retornarem, após mais de seis horas de procissão, os participantes são esperados na casa de Adão e Cacilda com café, coruja (massa de mandioca levemente adocicada) e outros alimentos da roça. Alimentam-se e vão para suas casas descansar, depois de terem cumprido a missão.
ISA, Anna Maria Andrade
[12/04/2010 12:24]
A Recomendação das Almas, procissão noturna que percorre mais de 20 km, é parte do patrimônio cultural quilombola, cuja tradição é mantida pela comunidade de Pedro Cubas, em Eldorado, no Vale do Ribeira. A equipe do ISA registrou a manifestação cultural.
Todos os anos, durante a semana santa, na virada da noite da sexta-feira da paixão para o sábado de aleluia, o cortejo fúnebre conhecido como Recomendação das Almas, sai do quilombo de Pedro Cubas, única comunidade quilombola da região que ainda pratica o ritual, e percorre um trecho de mais de 20 quilômetros entoando cânticos e orações. Foi assim na madrugada do sábado de aleluia, no último dia 4 de abril.
"Bendito louvado seja
Da morte paixão de Cristo
Acordai irmão das almas
Acordai se estão dormindo"
(Oração cantada da Recomendação das Almas em Pedro Cubas)
A equipe do ISA acompanhou e registrou a celebração. O material etnográfico e áudio-visual resultante integra o Projeto de Inventário de Referências Culturais Quilombolas, em elaboração conjunta com agentes culturais quilombolas. O projeto é patrocinado pela Petrobrás, e realizado em parceria com Aecid (Cooperação Espanhola), AIN (Ajuda da Igreja da Noruega), Secretaria Estadual de Cultura, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Núcleo Oikos e Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras).
O projeto busca o levantamento dos bens culturais imateriais e materiais de 16 comunidades quilombolas no Vale do Ribeira, aplicando a metodologia desenvolvida pelo Iphan, que reconhece cinco categorias do patrimônio cultural: “celebrações”; “ofícios e modos de fazer”; “formas de expressão”; “lugares”; e “edificações”. O inventário consiste na primeira etapa de um plano de salvaguarda de bens culturais, que pode culminar no registro do bem cultural nos cadernos do Iphan. O trabalho junto aos agentes culturais quilombolas deverá resultar na seleção de macro-categorias da cultura local, que contemplem as expressões culturais das comunidades.
Salvaguardar tradições culturais implica gerar internamente nas comunidades a consciência sobre a importância do objeto da salvaguarda. Com a participação efetiva dos agentes culturais e a mobilização das comunidades em qualificar suas formas culturais, o projeto alcança aquilo que constitui um de seus principais objetivos: a valorização do patrimônio cultural quilombola pelos próprios quilombolas.
A Recomendação das Almas de Pedro Cubas
Procissões fúnebres, realizadas a noite, com o objetivo de encaminhar as almas dos mortos à luz divina e às portas do céu já foram registradas em Portugal e em diversos estados brasileiros, de norte a sul, sob diferentes denominações: recomendação (ou recomenda) das almas; encomendação das almas; alimentação das almas; folia das almas; procissão das almas; sete passos; procissão de penitência.
Não se trata, portanto, de uma marca cultural particularmente quilombola. A referência desta expressão religiosa é católica, o que se percebe nas evocações recorrentes a Deus, Nossa Senhora, São Miguel, Santo Antônio de Lisboa. Em Pedro Cubas, elementos externos à tradição católica aparecem associados ao ritual, como a infusão em aguardente de guiné, utilizada para benzimento e cura, e personagens da literatura oral brasileira que são apropriados regionalmente de modo bastante particular. A Recomendação das Almas e suas variantes expressam um arranjo criativo do catolicismo à moda brasileira, encontrado em comunidades rurais, resultante das relações históricas entre diferentes tradições religiosas colocadas em contato pelo contexto colonial.
A figura do “irmão das almas”, evocado nos cânticos da comunidade de Pedro Cubas, é referência em procissões fúnebres também no nordeste, como revela a obra de João Cabral de Melo Neto Morte e Vida Severina. Aos irmãos das almas cabe o trabalho de lavar, vestir, velar e enterrar o defunto. Embora calcado na tradição católica, a Recomendação das Almas parece suspender temporariamente certas oposições cristãs: vida e morte, corpo e alma, luz e sombra. E traz para a dimensão do mundo visível, entes normalmente invisíveis. Esta suspensão permite a comunicação entre vivos e mortos e possibilita a eficácia do ritual, que é fazer com que os vivos tragam à luz as almas das sombras, para que sejam aceitas no céu. Ao mesmo tempo em que se ora pelas almas dos mortos, os participantes do ritual buscam a redenção de suas próprias almas.
A caminhada é realizada ao longo da estrada que liga a comunidade ao Rio Ribeira de Iguape. Os participantes são seguidos pelas almas dos mortos, atraídos pelos cânticos e pelo som da matraca, instrumento feito de pequenos tacos de madeira. Vivos e mortos dividem o mesmo espaço, e caminham no escuro em busca da mesma coisa: a redenção de suas almas. “A luz que buscamos, buscamos em oração”, explica o capelão Antonio Jorge. Para o curandeiro e benzedor da comunidade, Adão, “andamos no escuro para não chamar atenção de certos espíritos”. É que neste momento, as almas tornam-se visíveis, mas deve-se evitar olhar para elas.
Almas seguem os fiéis
Os locais de parada para oração são encruzilhadas, taperas, casas de antigos moradores, locais significativos da estrada. Quando param, todos se posicionam na margem da estrada, deixando a passagem livre para as almas. O capelão Antonio Jorge toca então, vagarosamente, sua matraca e entoa cânticos e orações que são seguidos pelo coro agudo das cantadeiras.
A Recomendação das Almas é realizada somente na semana santa, período em que, não por acaso, morte e vida (ressurreição) de Cristo são simbolicamente revividas. A procissão pode ocorrer em uma, três, cinco ou sete noites, conforme decisão dos participantes. Porém, é na passagem da sexta-feira da paixão para o sábado da aleluia que o cortejo percorre o trecho completo, partindo da comunidade de Pedro Cubas até o cemitério do Batatal, próximo ao Rio Ribeira de Iguape. Os trajes devem ser nas cores branca e preta. Branco para manutenção da luz e apaziguamento das almas; preto simbolizando luto.
A garrafada preparada por Cacilda, anfitriã e cantadeira da Recomendação das Almas, é uma infusão em aguardente de raiz de guiné, arruda, alho e eventualmente chifre de boi moído. Utilizada para benzimento dos participantes, antes e depois do cortejo, a garrafada é também consumida ritualmente como bebida, em virtude das propriedades medicinais de seus ingredientes. As orações intercedem pelas almas do purgatório, da encruzilhada e todas aquelas que resultam de mortes acidentais: alma dos atirados, alma dos afogados, e alma dos ofendidos (morte causada por picada e cobra). Ao retornarem, após mais de seis horas de procissão, os participantes são esperados na casa de Adão e Cacilda com café, coruja (massa de mandioca levemente adocicada) e outros alimentos da roça. Alimentam-se e vão para suas casas descansar, depois de terem cumprido a missão.
ISA, Anna Maria Andrade
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