É impressionante como pessoas, círculos, midia, "intelectuais", "cientistas" -- volta e meia, "meses e meio", "anos e meio" e, neste caso específico, 8 anos depois que a intelectual Sueli Carneiro evidenciou (mais uma vez) o caráter político do conceito de raça -- insistem em uma perspectiva "científica" sem consistência mostrando que não aprenderam nada -- depois de 40 anos da introdução do tema do "mito da neutralidade científica" no Brasil -- que possa aproximar a ciência da realidade. *
Vale atentar para o final do texto dos moços que falam de uma pesquisa de DNA '"ultramoderna" e chama de "hiper-antiga" a perpectiva que é política e que constitui os sers humanos no dia a dia a "polis", da cidade. [Ana Maria Felippe - MLG]
Identidade racial entre cultura e DNA
16/04/2011 - 19:00 - O Globo
Pesquisa que mostra dissociação entre aparência e genética no Brasil deve influir em cotas
Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos**
Em 1992, o antropólogo norte-americano Paul Rabinow cunhou o termo biossociabilidade em contraposição à sociobiologia, teoria proposta pelo zoólogo também americano Edward Wilson nos anos 1970. Para os sociobiólogos, a partir dos avanços da teoria evolutiva darwiniana, a dinâmica social humana, assim como das demais espécies animais, viria a ser explicada pelas leis da biologia.
Sociobiologia e biossociabilidade têm nomes parecidos, mas expressam visões radicalmente distintas acerca das relações entre biologia e sociedade. Como outros antropólogos, Rabinow posicionou-se criticamente quanto à perspectiva da sociobiologia de situar na biologia os determinantes últimos para explicar os processos sócioculturais humanos. Mas ele não defendia que os cientistas sociais deveriam se afastar da biologia. Para ele, com todos os avanços teóricos e tecnológicos experimentados pelas ciências biológicas na história recente, a biologia será para o século XXI o que a física foi para o século XX.
O conceito de biossociabilidade ancora-se na perspectiva de que é fundamental compreender como as tecnologias biológicas, e os avanços na genética em particular, interagem com e influenciam as dinâmicas sócio-culturais. Por exemplo, um tema que vem chamando a atenção dos antropólogos que se interessam pela perspectiva da biossociabilidade é o impacto das novas tecnologias reprodutivas sobre conceitos como família e reprodução. Um caso hipotético é aquele de uma mulher que, com dificuldades em levar uma gravidez a termo, tem um óvulo seu fecundado pelo esperma do marido in vitro e, a seguir, gestado no útero de sua irmã. Como redimensionar conceitos chave do pensamento ocidental, como mãe/pai, irmão/irmã e tio/tia, num cenário como esse?
Biossociabilidade é uma palavra longa, difícil de dizer, teoricamente densa, mas… é manchete de capa de jornais aqui no Brasil. No dia 18 de fevereiro último, O GLOBO trouxe uma matéria sobre a mais recente pesquisa do geneticista mineiro Sérgio Pena (da qual Sueli Carneiro já havia tratado em 2003, conforme demonstrado adiante - MLG). Segundo ele, do ponto de vista genético, as regiões do país são bem menos distintas do que se imaginava. Para Pena, em um país tão mestiço como o Brasil, há uma dissociação entre as características físicas (fenótipo) e as genéticas (genótipo). Ou seja, há muitos brasileiros com aparência indicativa de ancestralidade africana (cor da pele, textura do cabelo etc), mas que, do ponto de vista genômico, são majoritariamente de ancestralidade européia.
Essas interpretações genéticas trazem elementos relevantes para se pensar padrões de sociabilidade no Brasil contemporâneo, em particular quanto a novas leituras do ideário de um Brasil mestiço. Não menos, interpelam iniciativas do Estado brasileiro quanto à implantação de políticas de caráter étnico-racial, como é o caso das polêmicas e muito debatidas ações afirmativas para ingresso no ensino superior. Ao mesmo tempo, há propostas de leis para a inclusão dos critérios de cor/raça em domínios como saúde, mercado de trabalho e propaganda.
À sua maneira, a genética de Pena caminha no sentido de desestabilizar a ideia de um Brasil bipolar (brancos e negros), um dos pilares da racialização das políticas públicas. Análises como aquelas do DNA mitocondrial (mtDNA) e de genes marcadores informativos de ancestralidade mostram que muitos dos autoclassificados como brancos tem majoritariamente mtDNA de origem indígena ou africana e muitos negros podem ser predominantemente de ancestralidade europeia.
Em um livro recente (“Raça como questão: História, ciência e identidade no Brasil”, Editora Fiocruz, de 2010), analisamos não somente como as pesquisas contemporâneas em genética no Brasil interagem com as ideias de construção da identidade nacional, mas também exploramos algumas das tensões e interfaces entre ciência e a produção de identidades no Brasil desde o século XIX.
Debate étnico-racial pressiona por classificações
Uma das críticas do movimento negro a essas pesquisas genéticas, também presente em círculos acadêmicos, é a de que a questão do pertencimento étnico-racial é unicamente do domínio do social e do cultural. Arriscaríamos dizer que mesmo Sérgio Pena compartilha desta visão, qual seja, a de que não cabe à genética definir quem é X, Y ou Z em termos de pertencimento étnico-racial. Ainda mais porque um dos pontos mais enfatizados pelo geneticista é justamente que o conceito de raça é inadequado para descrever a diversidade biológica humana.
Mas os trabalhos de Pena nos fazem pensar se, em certos contextos, a proposta de que, do ponto de vista genômico, não existem brancos ou negros no Brasil, não deveria, sim, ser cuidadosamente considerada para fins de políticas públicas. Por exemplo, Pena menciona a tendência que se observa, sobretudo nos EUA, de comercialização de medicamentos como o Bidil. Este fármaco é indicado para o tratamento de falência cardíaca em pacientes afroamericanos. Pena e outros pesquisadores veem com muita preocupação tal racialização na área dos fármacos. Isso porque, em um contexto de globalização das tecnologias farmacêuticas, pode ser muito danoso transportar para outros países, com perfis genéticos diferentes, categorias étnico-raciais e utilizar as mesmas para fins de implantação de políticas na área da saúde.
O Brasil vive hoje um momento de debates sobre a questão étnico-racial. Para fins da implantação de políticas públicas, cresce a pressão por classificar, inclusive por parte do Estado. A genética de Pena traz uma proposta de (bio)sociabilidade que não é pouco radical ao enfatizar que, em larga medida, não somos o que parecemos. São argumentos que primam pela ênfase na fluidez, instabilidade e indefinição de categorias no plano racial. O fato é que, se a ultramoderna linguagem dos genes e do DNA consolida-se como extremamente influente nos debates sobre políticas de identidade no mundo contemporâneo, a hiper-antiga perspectiva da raça e de diferenças essencializadas perdura como elemento que experimenta constante reconfiguração em sua interação com conhecimentos e tecnologias emergentes. Neste complexo cenário, não são poucas as tensões epistemológicas e políticas que surgem dos olhares sobre a sociedade brasileira propiciados pelas análises genômicas.
** Ricardo Ventura Santos é antropólogo, pesquisador da Fiocruz e do Museu Nacional/UFRJ /-/ Marcos Chor Maio é sociólogo, pesquisador da Fiocruz
Extraído de In Vivo
De novo a raça
Por Sueli Carneiro***
Os novos resultados obtidos pelas pesquisas sobre as origens genéticas da população brasileira realizadas pelo grupo de cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderados por Flávia Parra e Sérgio Danilo Pena, repõem o debate sobre o conceito de raça. Como divulgado pela imprensa, as conclusões seriam assim resumidas, “Nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente, nem todo afro-brasileiro é necessariamente um negro”. Disso decorre, de acordo com os pesquisadores, que raça é somente um conceito social, o que as ciências sociais há muito tempo vem demonstrando.
E, como não poderia deixar de ser, a primeira conseqüência que é extraída,do resultado desse estudo, é de natureza política. Diz Sérgio Danilo Pena, a propósito da infeliz observação do presidente eleito em debate durante a campanha sobre a utilização de critérios científicos para a determinação dos grupos raciais de modo a viabilizar a implementação das cotas raciais para negros, “que a complexidade envolvida é ‘brutal’ e que não existe base objetiva para a introdução de cotas raciais nas universidades públicas por exemplo (...) A única coisa que se pode usar, sujeita a muitos abusos, é a autoclassificação”.
A contribuição fundamental desses estudos genéticos é a demonstração da ilegitimidade científica das teses racistas e das práticas discriminatórias que elas geram. É a explicitação do caráter político e ideológico de que elas se revestem. Portanto, era de se esperar que a reação que eles deveriam provocar seria uma condenação enfática das práticas racistas que produziram e permanecem reproduzindo violências e exclusões ao longo de nossa história. Desse reconhecimento adviria, como conseqüência ética obrigatória, a defesa de reparação dos males provocados. Ao contrário, as conclusões do estudo são utilizadas para negar uma dessas possibilidades, a adoção de cotas para negros no nível universitário.
Em outra área de conhecimento, a ciência nos informa que se não há base científica para uma classificação racial, há, no entanto, bases inesgotáveis para a discriminação. É o caso das conclusões do estudo de Ricardo Henriques, “Raça & Gênero”, nos sistemas de ensino (Unesco, 2002), que demonstra com abundância de dados estatísticos que “o pertencimento racial, de forma inequívoca, tem importância significativa na estruturação das desigualdades sociais e econômicas no Brasil.” E o autor categoricamente aponta que, para a reversão desse quadro, se “requerem políticas de inclusão com preferência racial, políticas ditas de ação afirmativa, que contribuam para romper com o circuito de geração progressiva de desigualdade (...) Portanto, faz-se necessário redefinir os horizontes de igualdade de oportunidades entre brancos e negros, estabelecendo políticas públicas explícitas de inclusão racial.”
Estamos, então, diante de um paradoxo. De um lado, um tipo de ciência que, ao provar a “insustentável leveza do ser negro”, desautoriza ações reparatórias; de outro, uma ciência que reconhece no ser negro uma condição concreta de inserção social inferiorizada e advoga por políticas específicas de inclusão. Entre ambas, a metáfora de Hannah Arendt, invocada por Roseli Fischmann em seu último artigo, “Do passado que se recusa a passar e permanece assombrando o presente para impedir o futuro”.
Para que um novo futuro para as relações raciais possa emergir, teremos que admitir que, como diz Antônio Sérgio Guimarães, “por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite-ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos-, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite. Fora desse paradigma, ou se retorna à farsa da democracia racial ou se opta pelo imobilismo e ratificação da abjeta estratificação racial existente.”
Portanto, é negro todo aquele que assim se autodeclare. E todos estão aptos a ser beneficiários de políticas de cotas. Abusos ou falsidade ideológica não são problemas da ciência e sim da Justiça.
*** Sueli Carneiro é Doutora em Filosofa; Diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra
Revista Espaço Aadêmico – Ano II – n. 21 – Fevereiro 2003
* "O Mito da Neutralidade Científica", do fabuloso (nas palavras de Marcelo Gleiser e de muitos/as de seus/suas alunos/as) Hilton Japiassu. Editora Imago. 1975 é obra fundamental para o inicío de qualquer abordagem epistemológica.
Vale atentar para o final do texto dos moços que falam de uma pesquisa de DNA '"ultramoderna" e chama de "hiper-antiga" a perpectiva que é política e que constitui os sers humanos no dia a dia a "polis", da cidade. [Ana Maria Felippe - MLG]
Identidade racial entre cultura e DNA
16/04/2011 - 19:00 - O Globo
Pesquisa que mostra dissociação entre aparência e genética no Brasil deve influir em cotas
Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos**
Em 1992, o antropólogo norte-americano Paul Rabinow cunhou o termo biossociabilidade em contraposição à sociobiologia, teoria proposta pelo zoólogo também americano Edward Wilson nos anos 1970. Para os sociobiólogos, a partir dos avanços da teoria evolutiva darwiniana, a dinâmica social humana, assim como das demais espécies animais, viria a ser explicada pelas leis da biologia.
Sociobiologia e biossociabilidade têm nomes parecidos, mas expressam visões radicalmente distintas acerca das relações entre biologia e sociedade. Como outros antropólogos, Rabinow posicionou-se criticamente quanto à perspectiva da sociobiologia de situar na biologia os determinantes últimos para explicar os processos sócioculturais humanos. Mas ele não defendia que os cientistas sociais deveriam se afastar da biologia. Para ele, com todos os avanços teóricos e tecnológicos experimentados pelas ciências biológicas na história recente, a biologia será para o século XXI o que a física foi para o século XX.
O conceito de biossociabilidade ancora-se na perspectiva de que é fundamental compreender como as tecnologias biológicas, e os avanços na genética em particular, interagem com e influenciam as dinâmicas sócio-culturais. Por exemplo, um tema que vem chamando a atenção dos antropólogos que se interessam pela perspectiva da biossociabilidade é o impacto das novas tecnologias reprodutivas sobre conceitos como família e reprodução. Um caso hipotético é aquele de uma mulher que, com dificuldades em levar uma gravidez a termo, tem um óvulo seu fecundado pelo esperma do marido in vitro e, a seguir, gestado no útero de sua irmã. Como redimensionar conceitos chave do pensamento ocidental, como mãe/pai, irmão/irmã e tio/tia, num cenário como esse?
Biossociabilidade é uma palavra longa, difícil de dizer, teoricamente densa, mas… é manchete de capa de jornais aqui no Brasil. No dia 18 de fevereiro último, O GLOBO trouxe uma matéria sobre a mais recente pesquisa do geneticista mineiro Sérgio Pena (da qual Sueli Carneiro já havia tratado em 2003, conforme demonstrado adiante - MLG). Segundo ele, do ponto de vista genético, as regiões do país são bem menos distintas do que se imaginava. Para Pena, em um país tão mestiço como o Brasil, há uma dissociação entre as características físicas (fenótipo) e as genéticas (genótipo). Ou seja, há muitos brasileiros com aparência indicativa de ancestralidade africana (cor da pele, textura do cabelo etc), mas que, do ponto de vista genômico, são majoritariamente de ancestralidade européia.
Essas interpretações genéticas trazem elementos relevantes para se pensar padrões de sociabilidade no Brasil contemporâneo, em particular quanto a novas leituras do ideário de um Brasil mestiço. Não menos, interpelam iniciativas do Estado brasileiro quanto à implantação de políticas de caráter étnico-racial, como é o caso das polêmicas e muito debatidas ações afirmativas para ingresso no ensino superior. Ao mesmo tempo, há propostas de leis para a inclusão dos critérios de cor/raça em domínios como saúde, mercado de trabalho e propaganda.
À sua maneira, a genética de Pena caminha no sentido de desestabilizar a ideia de um Brasil bipolar (brancos e negros), um dos pilares da racialização das políticas públicas. Análises como aquelas do DNA mitocondrial (mtDNA) e de genes marcadores informativos de ancestralidade mostram que muitos dos autoclassificados como brancos tem majoritariamente mtDNA de origem indígena ou africana e muitos negros podem ser predominantemente de ancestralidade europeia.
Em um livro recente (“Raça como questão: História, ciência e identidade no Brasil”, Editora Fiocruz, de 2010), analisamos não somente como as pesquisas contemporâneas em genética no Brasil interagem com as ideias de construção da identidade nacional, mas também exploramos algumas das tensões e interfaces entre ciência e a produção de identidades no Brasil desde o século XIX.
Debate étnico-racial pressiona por classificações
Uma das críticas do movimento negro a essas pesquisas genéticas, também presente em círculos acadêmicos, é a de que a questão do pertencimento étnico-racial é unicamente do domínio do social e do cultural. Arriscaríamos dizer que mesmo Sérgio Pena compartilha desta visão, qual seja, a de que não cabe à genética definir quem é X, Y ou Z em termos de pertencimento étnico-racial. Ainda mais porque um dos pontos mais enfatizados pelo geneticista é justamente que o conceito de raça é inadequado para descrever a diversidade biológica humana.
Mas os trabalhos de Pena nos fazem pensar se, em certos contextos, a proposta de que, do ponto de vista genômico, não existem brancos ou negros no Brasil, não deveria, sim, ser cuidadosamente considerada para fins de políticas públicas. Por exemplo, Pena menciona a tendência que se observa, sobretudo nos EUA, de comercialização de medicamentos como o Bidil. Este fármaco é indicado para o tratamento de falência cardíaca em pacientes afroamericanos. Pena e outros pesquisadores veem com muita preocupação tal racialização na área dos fármacos. Isso porque, em um contexto de globalização das tecnologias farmacêuticas, pode ser muito danoso transportar para outros países, com perfis genéticos diferentes, categorias étnico-raciais e utilizar as mesmas para fins de implantação de políticas na área da saúde.
O Brasil vive hoje um momento de debates sobre a questão étnico-racial. Para fins da implantação de políticas públicas, cresce a pressão por classificar, inclusive por parte do Estado. A genética de Pena traz uma proposta de (bio)sociabilidade que não é pouco radical ao enfatizar que, em larga medida, não somos o que parecemos. São argumentos que primam pela ênfase na fluidez, instabilidade e indefinição de categorias no plano racial. O fato é que, se a ultramoderna linguagem dos genes e do DNA consolida-se como extremamente influente nos debates sobre políticas de identidade no mundo contemporâneo, a hiper-antiga perspectiva da raça e de diferenças essencializadas perdura como elemento que experimenta constante reconfiguração em sua interação com conhecimentos e tecnologias emergentes. Neste complexo cenário, não são poucas as tensões epistemológicas e políticas que surgem dos olhares sobre a sociedade brasileira propiciados pelas análises genômicas.
** Ricardo Ventura Santos é antropólogo, pesquisador da Fiocruz e do Museu Nacional/UFRJ /-/ Marcos Chor Maio é sociólogo, pesquisador da Fiocruz
Extraído de In Vivo
De novo a raça
Por Sueli Carneiro***
Os novos resultados obtidos pelas pesquisas sobre as origens genéticas da população brasileira realizadas pelo grupo de cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), liderados por Flávia Parra e Sérgio Danilo Pena, repõem o debate sobre o conceito de raça. Como divulgado pela imprensa, as conclusões seriam assim resumidas, “Nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente, nem todo afro-brasileiro é necessariamente um negro”. Disso decorre, de acordo com os pesquisadores, que raça é somente um conceito social, o que as ciências sociais há muito tempo vem demonstrando.
E, como não poderia deixar de ser, a primeira conseqüência que é extraída,do resultado desse estudo, é de natureza política. Diz Sérgio Danilo Pena, a propósito da infeliz observação do presidente eleito em debate durante a campanha sobre a utilização de critérios científicos para a determinação dos grupos raciais de modo a viabilizar a implementação das cotas raciais para negros, “que a complexidade envolvida é ‘brutal’ e que não existe base objetiva para a introdução de cotas raciais nas universidades públicas por exemplo (...) A única coisa que se pode usar, sujeita a muitos abusos, é a autoclassificação”.
A contribuição fundamental desses estudos genéticos é a demonstração da ilegitimidade científica das teses racistas e das práticas discriminatórias que elas geram. É a explicitação do caráter político e ideológico de que elas se revestem. Portanto, era de se esperar que a reação que eles deveriam provocar seria uma condenação enfática das práticas racistas que produziram e permanecem reproduzindo violências e exclusões ao longo de nossa história. Desse reconhecimento adviria, como conseqüência ética obrigatória, a defesa de reparação dos males provocados. Ao contrário, as conclusões do estudo são utilizadas para negar uma dessas possibilidades, a adoção de cotas para negros no nível universitário.
Em outra área de conhecimento, a ciência nos informa que se não há base científica para uma classificação racial, há, no entanto, bases inesgotáveis para a discriminação. É o caso das conclusões do estudo de Ricardo Henriques, “Raça & Gênero”, nos sistemas de ensino (Unesco, 2002), que demonstra com abundância de dados estatísticos que “o pertencimento racial, de forma inequívoca, tem importância significativa na estruturação das desigualdades sociais e econômicas no Brasil.” E o autor categoricamente aponta que, para a reversão desse quadro, se “requerem políticas de inclusão com preferência racial, políticas ditas de ação afirmativa, que contribuam para romper com o circuito de geração progressiva de desigualdade (...) Portanto, faz-se necessário redefinir os horizontes de igualdade de oportunidades entre brancos e negros, estabelecendo políticas públicas explícitas de inclusão racial.”
Estamos, então, diante de um paradoxo. De um lado, um tipo de ciência que, ao provar a “insustentável leveza do ser negro”, desautoriza ações reparatórias; de outro, uma ciência que reconhece no ser negro uma condição concreta de inserção social inferiorizada e advoga por políticas específicas de inclusão. Entre ambas, a metáfora de Hannah Arendt, invocada por Roseli Fischmann em seu último artigo, “Do passado que se recusa a passar e permanece assombrando o presente para impedir o futuro”.
Para que um novo futuro para as relações raciais possa emergir, teremos que admitir que, como diz Antônio Sérgio Guimarães, “por mais que nos repugne a empulhação que o conceito de ‘raça’ permite-ou seja, fazer passar por realidade natural preconceitos, interesses e valores sociais negativos e nefastos-, tal conceito tem uma realidade social plena, e o combate ao comportamento social que ele enseja é impossível de ser travado sem que se lhe reconheça a realidade social que só o ato de nomear permite. Fora desse paradigma, ou se retorna à farsa da democracia racial ou se opta pelo imobilismo e ratificação da abjeta estratificação racial existente.”
Portanto, é negro todo aquele que assim se autodeclare. E todos estão aptos a ser beneficiários de políticas de cotas. Abusos ou falsidade ideológica não são problemas da ciência e sim da Justiça.
*** Sueli Carneiro é Doutora em Filosofa; Diretora do Geledés - Instituto da Mulher Negra
Revista Espaço Aadêmico – Ano II – n. 21 – Fevereiro 2003
* "O Mito da Neutralidade Científica", do fabuloso (nas palavras de Marcelo Gleiser e de muitos/as de seus/suas alunos/as) Hilton Japiassu. Editora Imago. 1975 é obra fundamental para o inicío de qualquer abordagem epistemológica.
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