Os desafios da Lei Maria da Penha
Autor: Atalá Correia*
Correio Braziliense - 15/02/2012
Há motivos de sobra para se assustar com os dados estatísticos relativos à violência doméstica, realçados a partir da promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7/8/2006). De janeiro a novembro de 2011, foram registrados pela polícia 10.171 casos em todo o Distrito Federal, mais de 900 por mês, aproximadamente 30 por dia. E os números representam apenas a pequena parcela de ofensas, ameaças, lesões corporais, estupros e homicídios que chegam ao conhecimento das autoridades.
Como pudemos conviver tanto tempo com isso, sem que houvesse uma legislação específica para tratar do tema? A resposta, nada evidente, é: somos uma sociedade muito mais machista do que ordinariamente imaginamos. Nunca havíamos nos dado conta de tamanha calamidade. Basta isso para constatarmos que a Lei Maria da Penha representa um indescritível avanço para concretizar direitos fundamentais das mulheres.
Ocorre que a promulgação de leis e a formação de estatísticas não são fins em si mesmos, mas meios para que se alcance um fim maior, qual seja, o combate e a redução desse cenário de violência doméstica. Passados mais de cinco anos desse marco regulatório, ainda há muito a avançar. Apenas um dia de trabalho com as vítimas revela que a violência doméstica tem raízes em profundos distúrbios familiares, sociais e psíquicos, para os quais a lei, a pena e a prisão são remédios, no mais das vezes, insuficientes.
A grande maioria delas sofre ao lado daquele que ama, ou pensa amar. Essa especial característica da violência doméstica é chamada de duplo vínculo. Faz com que a vítima escolha manter-se próxima do agressor, muitas vezes sob a ilusão de que aquele episódio não se repetirá, de que aquela foi a última vez ou, ainda, de que há conserto para a situação. Em muitos casos, a violência cessa — ou tem tudo para cessar — com o divórcio, mas essa não é uma escolha plausível. As vítimas não desejam se divorciar, não querem a punição do agressor. Simplesmente anseiam que cesse a violência, assim como o frequente abuso de álcool e drogas por parte dos agressores.
Autor: Atalá Correia*
Correio Braziliense - 15/02/2012
Há motivos de sobra para se assustar com os dados estatísticos relativos à violência doméstica, realçados a partir da promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7/8/2006). De janeiro a novembro de 2011, foram registrados pela polícia 10.171 casos em todo o Distrito Federal, mais de 900 por mês, aproximadamente 30 por dia. E os números representam apenas a pequena parcela de ofensas, ameaças, lesões corporais, estupros e homicídios que chegam ao conhecimento das autoridades.
Como pudemos conviver tanto tempo com isso, sem que houvesse uma legislação específica para tratar do tema? A resposta, nada evidente, é: somos uma sociedade muito mais machista do que ordinariamente imaginamos. Nunca havíamos nos dado conta de tamanha calamidade. Basta isso para constatarmos que a Lei Maria da Penha representa um indescritível avanço para concretizar direitos fundamentais das mulheres.
Ocorre que a promulgação de leis e a formação de estatísticas não são fins em si mesmos, mas meios para que se alcance um fim maior, qual seja, o combate e a redução desse cenário de violência doméstica. Passados mais de cinco anos desse marco regulatório, ainda há muito a avançar. Apenas um dia de trabalho com as vítimas revela que a violência doméstica tem raízes em profundos distúrbios familiares, sociais e psíquicos, para os quais a lei, a pena e a prisão são remédios, no mais das vezes, insuficientes.
A grande maioria delas sofre ao lado daquele que ama, ou pensa amar. Essa especial característica da violência doméstica é chamada de duplo vínculo. Faz com que a vítima escolha manter-se próxima do agressor, muitas vezes sob a ilusão de que aquele episódio não se repetirá, de que aquela foi a última vez ou, ainda, de que há conserto para a situação. Em muitos casos, a violência cessa — ou tem tudo para cessar — com o divórcio, mas essa não é uma escolha plausível. As vítimas não desejam se divorciar, não querem a punição do agressor. Simplesmente anseiam que cesse a violência, assim como o frequente abuso de álcool e drogas por parte dos agressores.
O duplo vínculo explica por que muitas vítimas se retratam da reclamação apresentada contra seus ofensores, por que um sem número delas sofre reiteradas lesões antes de denunciar a situação, e por que algumas permanecem ao lado dos agressores enquanto eles cumprem a pena. Há dupla vitimização. A mulher sofre na pele a violência doméstica e, em razão de sua especial situação de dependência, não consegue por meios próprios desvincular-se do agressor.
A jurisprudência de nossos tribunais até poucos dias atrás não era sensível a essa peculiaridade. Predominava o entendimento de que, dada a notícia da ocorrência de lesões corporais à polícia, a mulher poderia se retratar, colocando um ponto final no processo criminal contra seu agressor. Em 9 de fevereiro, julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) esclareceu que era equivocada a interpretação da lei que vinha sendo feita. Agora, prevalece a interpretação de que, após a comunicação do fato à polícia, as autoridades devem investigar e punir o agressor independentemente da vontade da vítima. Protege-se a mulher das pressões que contra ela possam ser exercidas. No entanto, como qualquer decisão judicial, a manifestação do STF se limita a corrigir os caminhos pelos quais se interpreta a lei. Ela não extrapola, nem poderia, o aspecto jurídico do problema.
Uma lei rigorosa é necessária, mas insuficiente para lidar com a violência doméstica. É necessário implementar políticas públicas que permitam restaurar harmonia no seio familiar e emancipar as mulheres social, econômica e psicologicamente. Os avanços a serem perseguidos devem ser intensificados com o fornecimento amplo e gratuito de apoio às famílias envolvidas. Psicólogos e médicos certamente detêm ferramentas mais apropriadas para tentar restabelecer, se possível, alguma harmonia no seio familiar.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios conta com uma rede de profissionais de saúde amplamente capacitada para o apoio aos envolvidos em tais casos. Mas o papel desses profissionais, no âmbito do Judiciário, só se dá após a criminalização da violência doméstica. Essa atuação deveria se dar de forma preventiva, em postos de saúde e hospitais, para que seus esforços encontrem a família antes que a desarmonia se transforma em violência.
* Atalá Correia éProfessor
do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), mestre em direito
pela USP e juiz de direito doTribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios (TJDFT).
Nenhum comentário:
Postar um comentário