Neusa Santos Souza: um Encontro; uma Homenagem
por Marco Aurélio Luz*
Só agora, com a poeira de emoções mais assentadas, venho a público dar o meu testemunho de nosso surpreendente encontro; coisas do destino...
Lá pelos fins da década de 1970, fui convidado por meu amigo Chaim (1), hoje psicanalista, a substituí-lo numa palestra nas cercanias do Hospital Pinel no Rio de Janeiro, para falar sobre aspectos da obra de Michel Foucault, especialmente o livro “Doença Mental e Psicologia”, recém lançado no Brasil pela Tempo Brasileiro. Naquela época eu já era conhecido naquela ambiência, por minhas participações no tema de análise institucional com Georges Lapassade, inclusive pela co-autoria num livro sobre Umbanda e ainda um filme curta metragem com os, então, estudantes Roberto Moura e Murilo Salles. Para tanto, freqüentamos os terreiros no morro Dona Marta; na Rocinha e fazíamos comparações com os “centros” (2) do “asfalto”. Porém, naquela ocasião do encontro com Neusa, já freqüentava terreiros de culto aos egungun e aos orixás, na Bahia e no Rio de Janeiro. Já era conhecido também num movimento negro nascente onde aconteceu minha participação nas Semanas Afro Brasileiras no MAM RJ em 1974, com atividades em torno do acervo de arte sacra negra de Mestre Didi que encerrava o ciclo de um périplo por países da África, Europa e América do Sul e que contribuíram para ampliar a atuação do CEAA (3) e com a fundação do IPCN (4) no Rio de Janeiro, dentre outros desdobramentos.
Enfim quando encerrei aquela palestra, Neusa se aproximou e se apresentou, falando de seu trabalho sobre identidade negra e se eu poderia trocar umas idéias com ela: ela da área de Psiquiatria e eu de Comunicação.
Coloquei-me à disposição e perguntei onde ela morava. Foi então que começaram as coincidências: nós morávamos no mesmo prédio, com alguns andares de diferença, e não sabíamos. Então, combinamos de nos encontrar num dia, em casa.
No nosso encontro, inicialmente cheio de cordialidades, ela disse ser baiana de Cachoeira, cidade de pujantes tradições culturais afro-brasileiras. Aí eu me senti mais à vontade prá puxar a conversa prá esse lado, falando de identidade articulada e formada pelos valores e pelas linguagens das tradições: o rico legado civilizatório ancestral.
Conversa vai, conversa vem e ela revela ser neta do Sr. Arsênio dos Santos.
Fiquei arrepiado e ainda hoje fico.
Desde que cheguei ao culto de Baba Egun ouvia falar com muito respeito do grande sacerdote, seu “Paizinho Alaba” como era conhecido o herdeiro dos mais significativos legados do culto. Seu tio Marcos Alapini e seu tio avô Marcos o Velho, foram responsáveis, numa viagem ao reino yoruba de trazerem os mais significativos Baba Egun para realizarem a reposição dessa tradição no Brasil, num povoado de africanos chamado Tuntun, na ilha de Itaparica.
Além disso, Mestre Didi tinha sido iniciado “ojé”, sacerdote do culto, por Marcos Alapini e depois por Paizinho, o Sr. Arsênio Ferreira dos Santos (avô de Neusa).
Além disso, por ser neta de Paizinho Alaba, ela pertencia a uma distinta linhagem da tradição com personalidades que ocuparam e ocupam altos títulos sacerdotais.
Então, naquele encontro, Neusa me contou que, no entanto, a família dela manteve-se relativamente afastada dessa tradição. Ainda mais ela que foi estudar na universidade, e depois se mudou de cidade, indo para o Rio de Janeiro.
Enfim outras passagens há para contar, mas prefiro dizer que seu livro “Tornar-se Negro” marca uma reflexão das mais importantes sobre a trajetória da afirmação dos afro-descendentes no contexto nacional.
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Sobre “Tornar-se Negro”
2ª edição, Graal, RJ, 1990
O livro fala daqueles que trilham o “caminho do branco” e vivenciam o que Eldridge Cleaver chamou de “Alma no Exílio”.
Diz Neusa na introdução sobre seu livro:
“Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro numa sociedade branca. De classe e ideologias dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Este olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica na decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos.”
E acrescenta:
“O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de “tornar-se gente”.
E ainda:
“Este livro trata desse contingente de negros, no que diz respeito ao custo emocional da sujeição, negação e massacre de sua identidade original, de sua identidade histórico-existencial.”
A originalidade de seu trabalho foi a de ter compartilhado a problemática das tentativas de articulação do materialismo histórico com a psicanálise aplicada à trama afetiva dos comportamentos sociais relativos à especificidade da trajetória de mobilidade social do “segmento negro” no Rio de Janeiro.
A articulação da Teoria das Ideologias (Althusser) com a Psicanálise (Lacan) possibilita uma leitura profunda dos depoimentos de experiências de vida de mulheres e homens negros que vivenciam a introjeção do preconceito gerado pelo imaginário ideológico racista que sobredetermina o interelacionamento social nesse contexto.
No que se refere então a esse contexto histórico, o ponto de partida é a ideologia do racismo institucional em que a razão de Estado através dos aparelhos ideológicos promove a rejeição da identidade original dos afrodescendentes baseada na cultura, instituições, valores e linguagem que constituem o processo civilizatório afro-brasileiro. Esse processo não navega em águas tranquilas, mas enfrenta e caminha em meio às políticas neo-colonialistas da herança européia.
No que se refere à Psicanálise acontece na interpretação dos depoimentos, muita vez, a constituição do Ego Ideal em detrimento do Ideal de Ego. O Eu imaginário e inalcançável do “padrão branco” toma lugar do Eu simbólico, das linguagens e valores da ancestralidade afro-brasileira.
“O Ideal de Ego não se confunde com o Ego Ideal.”
O Ego Ideal, instância regida pelo signo da onipotência e marcada pelo registro imaginário, caracteriza-se pela idealização maciça e pelo predomínio das representações fantasmáticas.
O Ideal do Ego é do domínio do simbólico. Simbólico quer dizer articulação e vínculo. Simbólico é o registro ao qual pertencem a Ordem Simbólica e a Lei que fundamenta esta ordem. O Ideal do Ego é portanto, a instância que estrutura o sujeito psíquico, vinculando-o a Lei e a Ordem. É o lugar do discurso.”
No caminhar pelas instituições do “mundo branco” o Super Ego atua introjetando o racismo, promovendo a rejeição da identidade original e plausível, ou seja, a identificação com seu contínuo civilizatório próprio e seus ancestrais ilustres no decorrer da história para substituí-la pelo Ego Ideal do fascínio da identidade e imagem do branco alimentado muitas vezes pelo núcleo familiar, pela indústria cultural, pelo sistema de ensino, pelas igrejas e demais aparelhos de Estado neocolonial republicano.
É a trama pulsante e pungente entre o Ideal de Ego, o Super Ego e o Ego Ideal que constitui o âmago do trabalho de Neusa, incrementado pelos comoventes relatos e depoimentos.
O valor especial do trabalho é que ele revela que as relações sociais estão envolvidas por emoção e afeto e que podem concorrer para corroer a possibilidade de afirmação de identidade plena.
“Esta ferida narcísica e os modos de lidar com ela constituem a psicopatologia do negro brasileiro em ascensão social e tem como dado nuclear uma relação de tensão contínua entre Super Ego atual e Ideal de Ego.”
E ainda:
“A possibilidade de construir uma identidade negra - tarefa eminentemente política – exige como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras primeiras - pais ou substitutos - que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco. Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições que lhe permitirão ter um rosto próprio”.
Neusa formou-se em Medicina e se tornou psicanalista de orientação lacaniana e foi uma escritora de textos que a tornaram clássica, como o pequenino e denso artigo adiante, a propósito das comemorações em torno dos 120 anos de abolição da escravatura no Brasil.
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Ouvindo a própria voz de Neusa
Contra o Racismo: Com Muito Orgulho e Amor (5)
Neusa Santos Souza - em 13 de maio de 2008
Comemoramos hoje 120 anos de abolição da escravatura negra no Brasil. Abolição da escravidão quer dizer aqui fim de um sistema cruel e injusto que trata os negros como coisa, objeto de compra e venda, negócio lucrativo para servir à ambição sem fim dos poderosos. Abolição da escravatura quer dizer aqui fim da humilhação, do desrespeito, da injustiça. Abolição da escravatura quer dizer libertação.
Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?
Cento e vinte anos de abolição quer dizer 120 de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia, convivem com o preconceito e a discriminação racial. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra o racismo desse país que é nosso e que ajudamos a construir: não só com o trabalho, mas, sobretudo, com a cultura transmitida por nossos ancestrais e transformada e enriquecida por cada um de nós. 120 de abolição quer dizer 120 anos de luta contra todos os setores da sociedade e da vida cotidiana: nos espaços públicos e nos espaços privados; na Câmara, no Senado, nos sindicatos, no local de trabalho, nas escolas, nas universidades, no campo, na praça e em nossas casas. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra qualquer lugar em que houver um negro que ainda sofra preconceito e discriminação raciais. Nesses 120 anos, tivemos muitas vitórias, conquistamos muitas coisas, especialmente um amor por nós mesmos, uma alegria, um orgulho de sermos o que somos: brasileiros negros – negros de muitos tons de cor de pele, efeito da mistura, que é uma bela marca da sociedade brasileira.
Nesses 120 anos tivemos muitas conquistas e temos muito mais a conquistar. Nesses 120 anos vencemos muitas batalhas e temos muito mais a batalhar.
Nesses 120 anos comemoramos muitas vitórias e temos muito mais a comemorar.
A escravidão acabou, mas a nossa luta continua!
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* Marco Aurélio Luz é Filósofo; Doutor em Comunicação; Pós-Doutor em Ciências Sociais Paris V-Sorbonne – CEAQ -Centre d’Etudes sur L’actuel du Quotidien. Autor de diversos artigos e livros em destaque: Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira; Do tronco ao Opa Exin: memória da tradição afro-brasileira; Cultura negra em tempos pós-modernos. Escultor de imagens da temática arte sacra afro-brasileira.
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Notas:
(1) Chaim Samuel Katz é psicanalista; Membro da “Formação Freudiana”; Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
(2) Centros de Umbanda
(3) Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro.
(4) Instituto de Pesquisas das Culturas Negras
(5) Especial para o Correio da Baixada, em 13 de maio de 2008. Disponível em Correio do Brasil
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Para mais sobre Neusa Santos Souza, ver página neste Memorial Lélia Gonzalez Informa
por Marco Aurélio Luz*
Especial para Memorial Lélia Gonzalez Informa
Quem tiver ocasião de ler o importante livro de Neusa Santos Souza, “Tornar-se Negro”, verá que nos agradecimentos mereço o registro de meu nome juntamente com outras amizades da autora. Foi no mês de dezembro, em 2008, que ela se despediu deixando todos os seus amigos e admiradores surpresos e com enorme saudade.Só agora, com a poeira de emoções mais assentadas, venho a público dar o meu testemunho de nosso surpreendente encontro; coisas do destino...
Lá pelos fins da década de 1970, fui convidado por meu amigo Chaim (1), hoje psicanalista, a substituí-lo numa palestra nas cercanias do Hospital Pinel no Rio de Janeiro, para falar sobre aspectos da obra de Michel Foucault, especialmente o livro “Doença Mental e Psicologia”, recém lançado no Brasil pela Tempo Brasileiro. Naquela época eu já era conhecido naquela ambiência, por minhas participações no tema de análise institucional com Georges Lapassade, inclusive pela co-autoria num livro sobre Umbanda e ainda um filme curta metragem com os, então, estudantes Roberto Moura e Murilo Salles. Para tanto, freqüentamos os terreiros no morro Dona Marta; na Rocinha e fazíamos comparações com os “centros” (2) do “asfalto”. Porém, naquela ocasião do encontro com Neusa, já freqüentava terreiros de culto aos egungun e aos orixás, na Bahia e no Rio de Janeiro. Já era conhecido também num movimento negro nascente onde aconteceu minha participação nas Semanas Afro Brasileiras no MAM RJ em 1974, com atividades em torno do acervo de arte sacra negra de Mestre Didi que encerrava o ciclo de um périplo por países da África, Europa e América do Sul e que contribuíram para ampliar a atuação do CEAA (3) e com a fundação do IPCN (4) no Rio de Janeiro, dentre outros desdobramentos.
Enfim quando encerrei aquela palestra, Neusa se aproximou e se apresentou, falando de seu trabalho sobre identidade negra e se eu poderia trocar umas idéias com ela: ela da área de Psiquiatria e eu de Comunicação.
Coloquei-me à disposição e perguntei onde ela morava. Foi então que começaram as coincidências: nós morávamos no mesmo prédio, com alguns andares de diferença, e não sabíamos. Então, combinamos de nos encontrar num dia, em casa.
No nosso encontro, inicialmente cheio de cordialidades, ela disse ser baiana de Cachoeira, cidade de pujantes tradições culturais afro-brasileiras. Aí eu me senti mais à vontade prá puxar a conversa prá esse lado, falando de identidade articulada e formada pelos valores e pelas linguagens das tradições: o rico legado civilizatório ancestral.
Conversa vai, conversa vem e ela revela ser neta do Sr. Arsênio dos Santos.
Fiquei arrepiado e ainda hoje fico.
Desde que cheguei ao culto de Baba Egun ouvia falar com muito respeito do grande sacerdote, seu “Paizinho Alaba” como era conhecido o herdeiro dos mais significativos legados do culto. Seu tio Marcos Alapini e seu tio avô Marcos o Velho, foram responsáveis, numa viagem ao reino yoruba de trazerem os mais significativos Baba Egun para realizarem a reposição dessa tradição no Brasil, num povoado de africanos chamado Tuntun, na ilha de Itaparica.
Além disso, Mestre Didi tinha sido iniciado “ojé”, sacerdote do culto, por Marcos Alapini e depois por Paizinho, o Sr. Arsênio Ferreira dos Santos (avô de Neusa).
Além disso, por ser neta de Paizinho Alaba, ela pertencia a uma distinta linhagem da tradição com personalidades que ocuparam e ocupam altos títulos sacerdotais.
Enfim outras passagens há para contar, mas prefiro dizer que seu livro “Tornar-se Negro” marca uma reflexão das mais importantes sobre a trajetória da afirmação dos afro-descendentes no contexto nacional.
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Sobre “Tornar-se Negro”
2ª edição, Graal, RJ, 1990
O livro fala daqueles que trilham o “caminho do branco” e vivenciam o que Eldridge Cleaver chamou de “Alma no Exílio”.
Diz Neusa na introdução sobre seu livro:
“Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se negro numa sociedade branca. De classe e ideologias dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Este olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica na decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos.”
E acrescenta:
“O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de identificação, como única possibilidade de “tornar-se gente”.
E ainda:
“Este livro trata desse contingente de negros, no que diz respeito ao custo emocional da sujeição, negação e massacre de sua identidade original, de sua identidade histórico-existencial.”
A originalidade de seu trabalho foi a de ter compartilhado a problemática das tentativas de articulação do materialismo histórico com a psicanálise aplicada à trama afetiva dos comportamentos sociais relativos à especificidade da trajetória de mobilidade social do “segmento negro” no Rio de Janeiro.
A articulação da Teoria das Ideologias (Althusser) com a Psicanálise (Lacan) possibilita uma leitura profunda dos depoimentos de experiências de vida de mulheres e homens negros que vivenciam a introjeção do preconceito gerado pelo imaginário ideológico racista que sobredetermina o interelacionamento social nesse contexto.
No que se refere então a esse contexto histórico, o ponto de partida é a ideologia do racismo institucional em que a razão de Estado através dos aparelhos ideológicos promove a rejeição da identidade original dos afrodescendentes baseada na cultura, instituições, valores e linguagem que constituem o processo civilizatório afro-brasileiro. Esse processo não navega em águas tranquilas, mas enfrenta e caminha em meio às políticas neo-colonialistas da herança européia.
No que se refere à Psicanálise acontece na interpretação dos depoimentos, muita vez, a constituição do Ego Ideal em detrimento do Ideal de Ego. O Eu imaginário e inalcançável do “padrão branco” toma lugar do Eu simbólico, das linguagens e valores da ancestralidade afro-brasileira.
“O Ideal de Ego não se confunde com o Ego Ideal.”
O Ego Ideal, instância regida pelo signo da onipotência e marcada pelo registro imaginário, caracteriza-se pela idealização maciça e pelo predomínio das representações fantasmáticas.
O Ideal do Ego é do domínio do simbólico. Simbólico quer dizer articulação e vínculo. Simbólico é o registro ao qual pertencem a Ordem Simbólica e a Lei que fundamenta esta ordem. O Ideal do Ego é portanto, a instância que estrutura o sujeito psíquico, vinculando-o a Lei e a Ordem. É o lugar do discurso.”
No caminhar pelas instituições do “mundo branco” o Super Ego atua introjetando o racismo, promovendo a rejeição da identidade original e plausível, ou seja, a identificação com seu contínuo civilizatório próprio e seus ancestrais ilustres no decorrer da história para substituí-la pelo Ego Ideal do fascínio da identidade e imagem do branco alimentado muitas vezes pelo núcleo familiar, pela indústria cultural, pelo sistema de ensino, pelas igrejas e demais aparelhos de Estado neocolonial republicano.
É a trama pulsante e pungente entre o Ideal de Ego, o Super Ego e o Ego Ideal que constitui o âmago do trabalho de Neusa, incrementado pelos comoventes relatos e depoimentos.
O valor especial do trabalho é que ele revela que as relações sociais estão envolvidas por emoção e afeto e que podem concorrer para corroer a possibilidade de afirmação de identidade plena.
“Esta ferida narcísica e os modos de lidar com ela constituem a psicopatologia do negro brasileiro em ascensão social e tem como dado nuclear uma relação de tensão contínua entre Super Ego atual e Ideal de Ego.”
E ainda:
“A possibilidade de construir uma identidade negra - tarefa eminentemente política – exige como condição imprescindível, a contestação do modelo advindo das figuras primeiras - pais ou substitutos - que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco. Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições que lhe permitirão ter um rosto próprio”.
Neusa formou-se em Medicina e se tornou psicanalista de orientação lacaniana e foi uma escritora de textos que a tornaram clássica, como o pequenino e denso artigo adiante, a propósito das comemorações em torno dos 120 anos de abolição da escravatura no Brasil.
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Ouvindo a própria voz de Neusa
Contra o Racismo: Com Muito Orgulho e Amor (5)
Neusa Santos Souza - em 13 de maio de 2008
Comemoramos hoje 120 anos de abolição da escravatura negra no Brasil. Abolição da escravidão quer dizer aqui fim de um sistema cruel e injusto que trata os negros como coisa, objeto de compra e venda, negócio lucrativo para servir à ambição sem fim dos poderosos. Abolição da escravatura quer dizer aqui fim da humilhação, do desrespeito, da injustiça. Abolição da escravatura quer dizer libertação.
Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?
Cento e vinte anos de abolição quer dizer 120 de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia, convivem com o preconceito e a discriminação racial. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra o racismo desse país que é nosso e que ajudamos a construir: não só com o trabalho, mas, sobretudo, com a cultura transmitida por nossos ancestrais e transformada e enriquecida por cada um de nós. 120 de abolição quer dizer 120 anos de luta contra todos os setores da sociedade e da vida cotidiana: nos espaços públicos e nos espaços privados; na Câmara, no Senado, nos sindicatos, no local de trabalho, nas escolas, nas universidades, no campo, na praça e em nossas casas. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra qualquer lugar em que houver um negro que ainda sofra preconceito e discriminação raciais. Nesses 120 anos, tivemos muitas vitórias, conquistamos muitas coisas, especialmente um amor por nós mesmos, uma alegria, um orgulho de sermos o que somos: brasileiros negros – negros de muitos tons de cor de pele, efeito da mistura, que é uma bela marca da sociedade brasileira.
Nesses 120 anos tivemos muitas conquistas e temos muito mais a conquistar. Nesses 120 anos vencemos muitas batalhas e temos muito mais a batalhar.
Nesses 120 anos comemoramos muitas vitórias e temos muito mais a comemorar.
A escravidão acabou, mas a nossa luta continua!
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* Marco Aurélio Luz é Filósofo; Doutor em Comunicação; Pós-Doutor em Ciências Sociais Paris V-Sorbonne – CEAQ -Centre d’Etudes sur L’actuel du Quotidien. Autor de diversos artigos e livros em destaque: Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira; Do tronco ao Opa Exin: memória da tradição afro-brasileira; Cultura negra em tempos pós-modernos. Escultor de imagens da temática arte sacra afro-brasileira.
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Notas:
(1) Chaim Samuel Katz é psicanalista; Membro da “Formação Freudiana”; Doutor em Comunicação pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
(2) Centros de Umbanda
(3) Centro de Estudos Afro-Asiáticos, da Universidade Candido Mendes, Rio de Janeiro.
(4) Instituto de Pesquisas das Culturas Negras
(5) Especial para o Correio da Baixada, em 13 de maio de 2008. Disponível em Correio do Brasil
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Para mais sobre Neusa Santos Souza, ver página neste Memorial Lélia Gonzalez Informa
Parabéns pela homenagem e em nos trazerem este registro.
ResponderExcluirPq não há fotos de Neusa Santos Souza na internet? NENHUMA!
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