Neusa Santos Souza

Neusa Santos Souza

(1948 a 20 de dezembro de 2008)

Em 22 de dezembro de 2008, Memorial Lélia Gonzalez circulou a seguinte mensagem para os contatos de MLG Informa:

Muito nos impressionou a pergunta (revoltada) de Nina Simone sobre o que levaria uma pessoa a compor uma canção como “Feelings” (Morris Albert/Louis Gaste): “Sentimentos / Nada mais que sentimentos / Estou tentando esquecer os meus Sentimentos de amor”...

E, na mesma linha, com muitas exclamações, perguntamos o que faz com que uma pessoa do tamanho de Neusa Santos Souza "em vez de continuar / tomasse melhor saída: / a de saltar, numa noite,/ fora da ponte e da vida?", parafraseando João Cabral de Melo Neto.

É exatamente como disse o Coletivo de Estudantes Negros da UERJ: “Perda irreparável para a comunidade negra.”

Nessa hora, pedimos aos Céus que acolham esta que foi guerreira entre as/os guerreiras/os e que muito, muito, contribuiu para nossa trajetória individual e coletiva.

E pedimos a você para dedicar à Neusa um ramo de enormes girassóis amarelíssimos, como fez a saudade de Fabiana Lima, da qual compartilhamos.





Diferente de Aristóteles, por exemplo, que diria ser a matéria o que preenche o vazio, para Jacques Lacan a matéria é o vazio. O essencial é o buraco.Neusa Santos Souza*
Citado por José Luiz Dutra de Toledo,
in “O Gato Que Ri do Meu Ego Esquizofrênico”.
Edição eBooksBrasil. 2006


Uma das obras que mais marcaram as/os militantes do movimento negro no Brasil foi o livro da guerreira Neusa Santos Souza “Tornar-se negro” que “lembra como o negro rejeita de muitas maneiras o aspecto exterior de seu ser-negro e o disfarça quando pode. É preciso um raro grau de consciência e valor de identidade para que essa rejeição assumida ou sofrida em silêncio se inverta, e a cor e o corpo do negro venham a ser sentidos como valor de beleza sem o dever do disfarce.” (Negro olhar – III - Carlos Rodrigues Brandão - Campinas, 20 de novembro de 1988 - Dia das festas da consciência negra)


Nosso livro mais conhecido: Tornar-se Negro 

Prefácio: Jurandir Freire Costa

Este livro procura romper a precariedade de estudos sobre a vida emocional dos negros. Diante da flácida omissão com que a teoria psicanalítica tem tratado esse assunto, a autora apresenta reflexões profundas e inquietantes sobre o custo emocional da sujeição, da negação da própria cultura e do próprio corpo. O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre de sua identidade, tomando o branco como modelo de identificação. 





Saberse negra es vivir la experiencia de haber sido masacrada en su identidad, confundida en sus expectativas, sometida a exigencias, compelida a expectativas alienadas. Pero es también, y sobre todo, la experiencia a comprometerse a rescatar su historia y recrearse en sus potencialidades” (Santos Souza: 83: 18)
Citado por Ochy Curiel*,
in “Identidades Esencialistas o Construcción de Identidades Políticas:
El dilema de las feministas negras”, 17 de mayo, 2003.
Disponível em REPEM. Acesso em: 27 mar. 2011
 

 
Quando alinhavou a sinopse de “Corpo a Corpo”, Gilberto Braga sabia que mexeria com muita gente. ... "Não estou falando dos preconceitos de uma forma leviana. Conversei com muita gente e li dois livros que me deram muita ajuda: “Fala, crioulo”, do Haroldo Costa, e “Tornar-se negro”, da psicanalista Neusa Santos Souza. E, claro, botei toda minha experiência de racismo", afirma Gilberto Braga.


por Fabiana Lima
domingo, 21 de dezembro de 2008


Hoje eu não consigo pensar, refletir, entabular idéias. Todo o meu corpo dói... Por favor, me deixem chorar! Mais um corpo de negra afro-africana se autodestrói e eu, em extensão, fragmento-me em mil megatons...

Há pessoas que só com uma obra já fundam mundos tão intensos que não precisam fazer mais nada em suas trajetórias por aqui. Converso com amigos e eles falam a mesma coisa: há músicos, cantores, intépretes, atores, intelectuais que só com uma obra, uma produção, um pensamento, uma interpretação já prestaram um grande serviço à humanidade. Daí podem descansar... Mas o mais louco é que justamente essas pessoas não descansam. Vivem vigorasamente até o fim. Até mesmo quando escolhem o dia e hora do fim de seus corpos, vivem em vigor!

Pois então, Neusa Santos Souza, ao produzir o importantíssimo estudo de caso "TORNAR-SE NEGRO ou as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social" transformou-se em um desses seres. Um estudo quase todo descritivo de trajetórias de afro-brasileiros em angústia. Seres humanos em conflito, cujas "nóias" aparecem explicitamente como sintomas de uma doença maior - o racismo. Nossos corpos e pensamentos como sintoma, sintoma de uma história que, aqui, tem teimado em ficar invisível.

Dentro desse processo, a leitora se depara e se identifica com os paradoxais mundos afetivos ali expostos, em doentia dúvida quanto aos valores ou papéis de seus corpos. Por isso, a pesquisa acabou por demonstrar quanto o processo de tornar-se negro é doloroso e, muitas vezes, impossível de ser feito por muitas e muitos afro-descendentes, nesta terra dos tropicalismos, dos mulatismos e das democracias raciais em voga. Tudo isso foi produzido por ela, num momento de quase total fechamento do mundo acadêmico brasileiro para o afro-brasileiro tomar-se a si próprio como objeto de pesquisa (o pleonasmo aqui é ênfase trágica mesmo, apontando a voz de um grupo ainda hoje impedido, em muitos departamentos acadêmicos brasileiros, de desenvolver projetos que abordem questões que o afetem mais de perto).

Não consigo passar daí em termos da tentativa de compreender por que mais um corpo negro escolhe despregar-se de si. Hoje não é definitivamente dia pra isso! Agora, só o estarrecimento, as lágrimas, o espanto e a dor ao tomar conhecimento de que Neusa escolheu ir, espatifando-se em um asfalto ou calçada qualquer. Meu corpo, aqui protegido diante desta tela de computador, dói inteirinho, meus ossos triturados. Despedaçada em mil e um pedacinhos de sangue!

Para Neusa, hoje, dia de seu sepultamento, depois do precoce fim por ela mesma escolhido, desejo um punhado de belas flores. Dedico-lhe um ramo de enormes girassóis amarelí- ssimos, pela coragem de uma vida inteira, até o momento final da explosão de si!

Poster Girasoles de Keith Mallet

Until the philosophy which hold one race
Superior and another inferior
is finally and permanently discredited and abandoned
Everywhere is war, me say war.
Bob Marley

Da série BLUES



por Alfredo Herkenhoff
20/1/2009


Em 2008, às vésperas da comemoração dos 120 anos da abolição da escravidão com a Lei Áurea, pedi um texto especial à escritora Neusa Santos Souza para a edição de 13 de maio do jornal Correio da Baixada, vespertino diário voltado para a periferia do Rio. Eu o editava até a crise mundial de setembro botar o veículo do Grupo Monitor Mercantil no limbo, depois de mais de seis meses de jornalismo cotidiano valorizando o povo sofrido da Baixada Fluminense. Neusa era uma psicanalista lacaniana bem sucedida profissionalmente, negra baiana que, contrariando as estatísticas e as dificuldades de berço pobre, estudou e estudou muito, Medicina e Psicanálise, estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde convivia com intelectuais e dava uma importante contribuição na luta contra a discriminação racial.

Neusa não agüentou chegar a 2009 para comemorar os 120 anos de proclamação da República. No sábado, 20 de dezembro, com cerca de 60 anos de idade, suicidou-se sem antes jamais ter dado sinais de depressão ou de que pudesse um dia recorrer ao gesto extremo de tirar a própria vida. Qual Ismália, lançou-se de alto de uma construção, um imponente edifício onde vivia na Rua General Glicério, Laranjeiras. Ela deixou apenas uma pequena mensagem pedindo desculpas aos poucos amigos do peito por sua decisão radical. Não era casada, não tinha filhos. Sua riqueza material – colecionava artes plásticas da melhor – deve ir para parentes colaterais na Bahia, distantes intelectualmente dela e de seu cotidiano de luta contra o racismo.

No mesmo dia em que se matou, quase à mesma hora, um casal de negros (Umberto Alves e Louise Silva), que saía do Restaurante Nova Capela, ao embarcar tarde da noite num ônibus na Avenida Mem de Sá, na Lapa, foi parar na delegacia, na esteira de um entrevero envolvendo dignidade, preconceito e despreparo policial que só terminaria por volta de meio-dia com depoimentos e IML. O incidente, segundo versão do casal, se deu porque a polícia retirava um negro à força de um ônibus por ter este passageiro gritado que o carro-patrulha estava estacionado irregularmente, atravancando o trânsito. A interferência solidária do segundo negro (Umberto) e sua mulher gerou a confusão truculenta na mesma hora em que, por motivos insondáveis, Neusa Santos Souza, com as mesmas algemas que humilham cidadãos em todas as Lapas da vida, e ainda com o coração desesperançado, saía também forçada de um coletivo chamado Sociedade Brasileira.

Agora, um mês depois de sua morte e de mais um incidente envolvendo preconceitos no espaço público e boêmio da Lapa, é uma honra poder lembrar Neusa Santos Souza, cujo trabalho eu já tivera a oportunidade de apoiar quando, nos anos 90, então na chefia de reportagem do Jornal do Brasil, divulguei o que a psicanalista fazia: Trabalhava na Casa Verde e lá promovia periodicamente almoços temáticos com seus pacientes, acompanhados de amigos e parentes. Num mês era almoço mexicano, noutro indiano, africano ou italiano. E na partilha de momentos em torno da fome, e também fome de afeto, de paladar e de cultura, os pacientes e pessoas queridas guardavam momentos felizes.

Neusa publicou, entre outras coisas, o livro Tornar-se Negro (Graal, 1983), referência sobre as dificuldade emocionais de negros que rechaçam a própria imagem por indução racista de seus algozes históricos. No livro e no artigo a seguir, a baiana lacaniana faz um diagnóstico sobre essa baixa auto-estima de negros e defende a necessidade de prosseguir lutando apesar de tantas vitórias e avanços. Mas a psicanalista nunca teve apoio consistente da mídia. Televisão popular então, nem pensar. No Brasil, a mentira, o silêncio, o desprezo pelas iniciativas positivas, o despreparo e ainda a injustiça quase sempre prevalecem. Por isso, tantos índices ruins… A morte de Neusa, aliás, praticamente, só foi noticiada pela Fundação Palmares.

Mas vamos ao texto de 13 de maio no Correio da Baixada, talvez o último que Neusa tenha assinado num jornal diário antes de desistir de viver, dando a sua própria desistência como um sintoma de resistência radical contra setores violentos e cínicos na sociedade brasileira.

Ei-lo:
Contra o racismo: com muito orgulho e amor

Neusa Santos Souza – Especial para o Correio da Baixada,
em 13 de maio de 2008

Comemoramos hoje 120 anos de abolição da escravatura negra no Brasil. Abolição da escravidão quer dizer aqui fim de um sistema cruel e injusto que trata os negros como coisa, objeto de compra e venda, negócio lucrativo para servir à ambição sem fim dos poderosos. Abolição da escravatura quer dizer aqui fim da humilhação, do desrespeito, da injustiça. Abolição da escravatura quer dizer libertação.

Mas será que acabamos mesmo com a injustiça, com a humilhação e com o desrespeito com que o conjunto da sociedade brasileira ainda nos trata? Será que acabamos com a falta de amor-próprio que nos foi transmitido desde muito cedo nas nossas vidas? Será que já nos libertamos do sentimento de que somos menores, cidadãos de segunda categoria? Será que gostamos mesmo da nossa pele, do nosso cabelo, do nosso nariz, da nossa boca, do nosso corpo, do nosso jeito de ser? Será que nesses 120 de abolição conquistamos o direito de entrar e sair dos lugares como qualquer cidadão digno que somos? Ou estamos quase sempre preocupados com o olhar de desconfiança e reprovação que vem dos outros?

Cento e vinte anos de abolição quer dizer 120 de luta dos negros que, no Brasil, dia a dia, convivem com o preconceito e a discriminação racial. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra o racismo desse país que é nosso e que ajudamos a construir: não só com o trabalho, mas, sobretudo, com a cultura transmitida por nossos ancestrais e transformada e enriquecida por cada um de nós. 120 de abolição quer dizer 120 anos de luta contra todos os setores da sociedade e da vida cotidiana: nos espaços públicos e nos espaços privados; na Câmara, no Senado, nos sindicatos, no local de trabalho, nas escolas, nas universidades, no campo, na praça e em nossas casas. 120 de abolição quer dizer 120 de luta contra qualquer lugar em que houver um negro que ainda sofra preconceito e discriminação raciais. Nesses 120 anos, tivemos muitas vitórias, conquistamos muitas coisas, especialmente um amor por nós mesmos, uma alegria, um orgulho de sermos o que somos: brasileiros negros – negros de muitos tons de cor de pele, efeito da mistura, que é uma bela marca da sociedade brasileira.

Nesses 120 anos tivemos muitas conquistas e temos muito mais a conquistar. Nesses 120 anos vencemos muitas batalhas e temos muito mais a batalhar.

Nesses 120 anos comemoramos muitas vitórias e temos muito mais a comemorar.

A escravidão acabou, mas a nossa luta continua!







"Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas."

Tornar-se Negro - 1991 - p. 17-18






Algumas obras que Neusa nos deixou estão em:

A Psicose: um Estudo Lacaniano - Neusa Santos Souza - ISBN 8573092130
 


O objeto da angústia. Maria Silvia G. F. Hanna, Neusa Santos Souza. Os onze artigos que compõem este livro giram em torno do Seminário X, A angústia, seminário de Lacan que ocupa um lugar de destaque na psicanálise e no ensino lacaniano por tratar de um dos seus conceitos mais originais. 168 pags., ISBN 85-7577-238-4. Editora 7letras




Vivi e ainda vivo este trabalho de Neusa Santos Souza com a mesma intensidade que vivi e ainda vivo Frantz Fanon, especialmente em "Pele Negra e Máscaras Brancas".

Tornar-se negro. Neusa Santos Souza. Prefácio: Jurandir Freire Costa. Este livro procura romper a precariedade de estudos sobre a vida emocional dos negros. Diante da flácida omissão com que a teoria psicanalítica tem tratado esse assunto, a autora apresenta reflexões profundas e inquietantes sobre o custo emocional da sujeição, da negação da própria cultura e do próprio corpo. O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga o preço do massacre de sua identidade, tomando o branco como modelo de identificação. Edições Graal. 1990. 90 p. ISBN 8570380542



Neusa foi e continua sendo referência para a reflexão étnica consciente e consistente:



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2 comentários:

  1. É muito triste que, parafraseando a guerreira Neusa Santos Souza, os setores violentos da n/sociedade, violência sutil ou aberta, continuem incentivando a permanência da injustiça, da humilhação e do desrespeito com que somos tratados pelo conjunto da sociedade brasileira. Tenho a certeza de que se este tratamento já tivesse se humanizado/equilibrado a Neusa ainda estaria neste mundo.
    Irani Maia Pereira, brasileira, afrodescendente, trabalhando em Cabo Verde.
    Praia, 08.09.13

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  2. Trago em mim, uma identificação muito forte com a produção de Neusa santos Souza, me vejo sendo falada a partir de sua valiosa contribuição psicanalítica.

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