sábado, 27 de novembro de 2010

Carta de Brasília das Mulheres Trabalhadores do Cone Sul

Carta de Brasília:

Na véspera do Dia Internacional de Combate à Violência Contra as Mulheres nós, trabalhadoras dos países que constituem o Cone Sul (Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), reunidas em Brasília, Distrito Federal do Brasil, reafirmamos a luta feminista por justiça, em defesa da igualdade entre homens e mulheres e pelo fim da violência contra as mulheres!

Apontamos a necessidade de construirmos um novo modelo de sociedade, onde a valorização do trabalho seja sinônimo de emancipação, e onde as mulheres tenham, além de autonomia econômica, autonomia sobre seus corpos.

Nossa situação é comum em todas as regiões do mundo. Os índices de violência contra as mulheres são alarmantes, nossa jornada de trabalho é cada vez maior, recebemos em média 30% a menos do que os homens, continuamos sendo as únicas responsáveis pela casa, pela família, pelo cuidado e educação dos filhos, além de ainda estarmos sub representadas nos espaços de poder e decisão.

No mundo, a cada cinco dias de falta da mulher ao trabalho, um é decorrente de violência sofrida no lar. Na América Latina e Caribe, a violência doméstica incide sobre 24% a 50% das mulheres. No Brasil, a cada 4 minutos uma mulher é agredida em seu próprio lar por uma pessoa com quem mantém relação de afeto. As estatísticas disponíveis e os registros nas delegacias especializadas de crimes contra a mulher demonstram que 70% dos incidentes acontecem dentro de casa e que o agressor é o próprio parceiro. Mais de 40% das violências resultam em lesões corporais graves decorrentes de socos, tapas, chutes, queimaduras, espancamentos e estrangulamentos.

Estes números revelam a urgência de uma política eficiente de combate à violência contra a mulher, que se constitui ao mesmo tempo num foco de resistência às transformações sociais de gênero e num grave entrave ao desenvolvimento pessoal das mulheres. Além dos agravos para a saúde física e mental, a convivência cotidiana em uma relação violenta mina a capacidade produtiva da mulher, seu desenvolvimento (em termos de educação e trabalho), sua qualidade de vida, sua auto-estima e o seu exercício da cidadania.

No mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que cresce a participação das mulheres, persistem a segmentação das profissões por sexo e raça, além da desigualdade dos salários femininos em comparação aos masculinos. Crescem, entre as mulheres, o desemprego e as dificuldades de acesso à proteção social. A violência no trabalho também aparece de outras formas: assédio sexual por parte dos trabalhadores e dos empregadores; exigência de atestados de “não gravidez” como requisito à contratação; assédio moral e, de forma generalizada, as limitações para conciliar o trabalho com as responsabilidades com a família e a casa, devido à permanência da divisão desigual entre os gêneros.

Diante do exposto, denunciamos:
  • • A situação das mulheres no mercado de trabalho que apresenta características que se configuram em desigualdades. Os homens recebem 30% a mais que as mulheres em funções iguais (mesmo quando as mulheres têm mais escolaridade). As mulheres representam 70% dos excluídos da Previdência Social e são maioria entre os desempregados, além de serem maioria absoluta no mercado informal (aquele exercido de forma mais precária, sem direitos nem regulação). A discriminação no mercado de trabalho reflete-se também em outras práticas discriminatórias, como assédio moral e sexual.
  • • Todas as formas de violência contra as mulheres. Somos constantemente alvos da violência, que na maioria das vezes é praticada por pessoas próximas, com quem convivemos e nos relacionamos. Em março de 2009 fizemos uma manifestação na fronteira Brasil/Uruguai porque este é um local onde ocorrem muitos casos de violência, como estupros e agressões e, por ser um local de fronteira, os agressores acabam por ficar impunes. Neste dia 24 de novembro de 2010, voltamos a nos reunir em Brasília, para reivindicar o estabelecimento de um Pacto Regional de Enfrentamento à Violência, que faça valer as leis existentes e amplie o arcabouço jurídico dos países que ainda não tem instrumentos suficientes para coibir a violência e punir os agressores. Além disso, necessitamos enfrentar o turismo sexual e o tráfico de mulheres, a exploração sexual, a prostituição e o trabalho escravo e infantil.



Dentre as ações necessárias, propomos a efetiva implantação de Juizados Especiais de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica, a ampliação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, a criação e o fortalecimento de Redes de Atendimento às mulheres em situação de violência e a manutenção de Casas de Passagem.

É por isso que lutamos!

  • Por um outro MERCOSUL onde todas as mulheres possam viver livre da violência sexista!
  • Para superar as desigualdades de salário e de oportunidades entre homens e mulheres!
  • Pelo direito ao trabalho, com garantia de direitos trabalhistas e sociais estendida aos trabalhadores e trabalhadoras migrantes!Por uma sociedade sem qualquer tipo de exploração e preconceitos, uma sociedade em que homens e mulheres possam viver com igualdade de oportunidades!
Neste sentido, nós, mulheres trabalhadoras do Cone Sul, vimos neste momento de luta do dia 25 de novembro, exigir dos Governantes de nossos países:

  • 1. Criação e efetiva implementação das políticas de combate à violência contra as mulheres
  • 2. Criação e fortalecimento de Redes de Atendimento às mulheres em situação de violência, incluindo os Juizados Especiais de Atendimento às Vítimas de Violência Domestica, as casas abrigo e as Delegacias Especializadas de Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência (DEAM´S), com pleno funcionamento
  • 3. Instituição de um protocolo de extradição comum para tratar dos casos de violência sexista nas áreas de fronteiras;
  • 4. Instalação de uma Frente Parlamentar, no âmbito do MERCOSUL, para o Enfrentamento à Violência contra as mulheres.
  • 5. Estabelecimento de um Pacto Regional do MERCOSUL de enfrentamento à violência;
  • 6. Instalação de casas abrigo para mulheres vítimas de violência nas regiões de fronteira;

Seguiremos em nossa luta por igualdade, e exigimos de nossos Governos políticas de Estados para a efetiva garantia do direito de todas as mulheres a uma vida sem violência.

Não nos calaremos diante de manifestações de violência sexista – Violência Contra as Mulheres, Tolerância Nenhuma!

Comissão de Mulheres da Coordenadora de Centrais Sindicais do Cone Sul

Centrais Sindicais da Argentina:
CGT – Confederação Geral de Trabalhadores
CTA – Central de Trabalhadores da Argentina

Centrais Sindicais do Brasil:
CGTB – Central Geral dos Trabalhadores Brasileiros
CTB – Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras Brasileiros
CUT- Central Única dos Trabalhadores
Força Sindical
NCST – Nova Central Sindical dos Trabalhadores
UGT – União geral dos Trabalhadores

Centrais Sindicais do Chile:
CUT Chile – Central Unitária de Trabalhadores do Chile
CAT Chile – Central Autônomo dos Trabalhadores do Chile

Centrais Sindicais do Paraguai:
CUT A – Central Unitária de Trabalhadores Autêntica
CUT Paraguai – Central Única dos Trabalhadores do Paraguai
CTN Paraguai – Central de Trabalhadores

Central Sindical do Uruguai:
PIT/CNT – Plenária Intersindical de Trabalhadores

Movimentos Feministas:
Marcha Mundial das Mulheres
União Brasileira de Mulheres

Brasília 24 de novembro de 2010

Extraída de estudiobr - Boletim 130




Em Defesa de nossas Meninas Candaces

Dia Internacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres: Em Defesa de nossas Meninas Candaces*

Andréia Lisboa de Sousa**


Se refletirmos um mínimo sobre a questão, não teremos dificuldades em perceber o queo sistema de ensino destila em termos de racismo: livros didáticos, atitude dos professores em sala de aula e nos momentos de recreação, apontam para em processo de lavagem cerebral de tal ordem que, a criança (…) já não mais se reconhece como negra. E são exatamente essas “exceções” que, devidamente cooptadas, acabam por afirmar a inexistência do racismo e de suas práticas. Quando se dá o caso oposto, isto é, de não aceitação da cooptação e de denúncia do processo [de] super-exploração a que o negro é submetido, surge imediatamente a acusação de ‘racismo ás avessas’. (Lélia Gonzalez, 1979)


A intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez, uma de nossas Candaces brasileiras, nos lembra que historicamente no Brasil negros e negras encontram-se em desvantagem nos sistemas de ensino, assim como nas demais agencias do bem estar social. Nossos dois últimos presidentes, FHC (1994-2001) e Lula (2002-2010) reconheceram a existência do racismo que assola não somente o tecido social como o indivíduo e suas relações interpessoais. Todavia, nesse Dia internacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres em 2010, quais são as perspectivas colocadas para as mulheres e meninas negras brasileiras? Mostra-se bastante significativo o investimento na manutenção do papel da mulher negra como um ser pouco inteligente, relegada apenas a exercer o trabalho doméstico, sendo comandada por uma mulher branca. Seria a imagem da empregada doméstica, sem escolarização, caricaturizada, animalizada, beiçuda e macaca de carvão o único lugar que a sociedade reserva e consegue permitir como de visibilidade à mulher negra?

Observamos que, recentemente, em 2006, fomos induzidos a pensar que houve avanço na política dos programas de livros do Ministério da Educação (Programa Nacional Biblioteca na Escola/PNBE, Programa Nacional do Livro Didático/PNLD e Programa Nacional do Livro do Ensino Médio/PNLEM) no sentido de contemplarem o princípio do respeito à diversidade etnorracial. Os editais dos referidos programas expressam categoricamente que: “serão excluídas as coleções que não obedecerem aos seguintes estatutos (…)” (Edital do PNBE/2010); “Serão sumariamente eliminadas as obras que não observarem os seguintes critérios (...)” (Edital do PNLD 2010) e “Todas as obras deverão observar os preceitos legais e jurídicos (...)” (Edital PNLEM 2007).

Todos eles citam, dentre outros dispositivos legais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e suas alterações, o Parecer CNE/CP nº 003/2004, de 10/03/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1, de 17/06/2004, que dispõem sobre as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O PNBE cita o Estatuto da Criança e do Adolescente e os dois últimos ainda citam a “Lei nº 10.639/2003”, que tornou obrigatório o ensino de Historia e Cultura Afro-Brasileira no currículo escolar. O PNBE explicitamente informa que obras que veiculem “estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico- racial, de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos (…)” serão excluídas. Diante desse jogo político, é evidente que os editais sofreram alterações em suas redações, mas não foram capazes de alterar o olhar do/da avaliador/a e, por conseguinte, não alterou o processo e as formas de avaliação e seleção de livros racistas e discriminatórios. Desse modo, em 2010, infelizmente nos deparamos com o descumprimento dos critérios de exclusão das obras submetidas ao processo de avaliação dos referidos programas, uma vez que tanto as regras do edital quanto o posicionamento político do MEC contrariam o que foi proposto e divulgado em seus respectivos editais. Por isso, houve a necessidade de se elaborar o parecer CNE/CEB Nº: 15/2010, orientando sobre a situação e as atentando para implicações da seleção do livro: “As caçadas de Pedrinho”de Monteiro Lobato, dado seu conteúdo discriminatório.

O que há por trás de uma gestão de política de livros que faz alterações em seus editais e as divulga fazendo parecer que está cumprindo as leis, mas que no entanto, na prática, produz um efeito totalmente contrário? O que há por de trás dos cartéis editoriais brasileiros, controlados por algumas corporações européias, que submetem livros racistas para a seleção dos programas do MEC. É assim que a supremacia branca evidencia seu poder social, pois mesmo tendo ciência das regras de seleção de livros, ela submete e tem selecionado (aprovado) livros com conteúdos racistas. Na verdade, esse programas de livros são utilizados como aparelhos ideológicos estatais que, dessa forma, mostram-se eficientemente à serviço da produção, reprodução e reforço de práticas discriminatórias contra, principalmente, a menina, a jovem e a mulher negra.

Apesar dos esforços de entidades que trabalham com direitos humanos, entidades negras, de educadoras/es e de pesquisadoras/es negras/os em prol do combate ao racismo e ao preconceito, o livro “As caçadas de Pedrinho” sem qualquer avaliação rigorosa no que diz respeito, especificamente, à temática racial foi aprovado pelas/os avaliadoras/es do Programa Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE). Cabe então perguntar: quem são esses avaliadores? Quantos especialistas negros, especializados em literatura infanto-juvenil fazem parte da equipe de avaliação? Quais mudanças efetivas ocorreram na política do Programa Nacional Biblioteca na Escola, após a aprovação do Parecer CNE/CP nº 003/2004, de 10/03/2004 e da Resolução CNE/CP nº 1, de 17/06/2004?

Como a temática etnorracial está sendo implementada nas instâncias internas e externas do MEC? Como a política orçamentária é planejada para a realização de programas de capacitação e como os cursos de capacitação da Secretaria de Educação Básica têm preparado nossas/os profissionais de educação para lidar com a educação para a igualdade racial? Necessitamos que nossas/os especialistas negras/os não só sejam parte integrante das equipes que compõem esses programas, mas que sejam os gestores (coordenadores) dos mesmos para que uma política de inclusão e diversidade etnorracial se concretize de fato. Necessitamos também de especialistas em materiais pedagógicos sobre essa temática integrando o mercado editorial, principalmente nas editoras que submetem seus livros aos programas de livros do MEC.

Como podemos entender como normal a compra de livros que veiculem abertamente a identificação de “macaca de carvão” com explicitado em “As caçadas de Pedrinho”para pessoas negras? Se o fato de uma personagem que é apontada como “macaca de carvão” não se enquadrar na definição de estereótipo e estigma, teremos que mudar toda a literatura acadêmica sobre o tema. Goffman, Bendelow, Gillian and Williams, Ana Célia da Silva, Esmeralda Negrão, Fúlvia Rosemberg, Regina Pahim Pinto, Edith Piza, dentre outras que já evidenciaram em seus conhecidos estudos o quanto o preconceito e o estereótipo são nocivos para crianças e adolescentes. Portanto, os estudos acadêmicos de referência para o tema não mais servirão para nortear novos estudos e análises.

Se o MEC não cumpriu a meta de formação de professores, se as universidades não instituíram disciplinas para a educação das relações raciais, salvo algumas exceções, de onde vem a certeza de que nossos professores estão preparados para - após o contato da criança com um texto preconceituoso que já implicou em seu auto-conceito e auto-imagem - dar-lhe novos elementos para a não cristalização e superação desses estereótipos? Por que sujeitar nossas crianças negras ao exercício tão doloroso de ler: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou na árvore que nem uma macaca de carvão”? Por que optar pela distribuição de um livro que comprovadamente é um atentado à da imagem da mulher negra: “... nem Tia Nastácia, que tem carne preta"? Por que investir na imagem destrutiva, chocante, terrorista: "… aves, desde o negro urubu fedorento até essa jóia de asas…” para depois apostar que a/o educadora/or “trabalhará” isso em sala de aula adequadamente?

Sem sombra de dúvidas, esse contexto só vem a demonstrar que as tradicionais artimanhas das tecnologias de poder, aplicadas por grupos conservadores (a tal intelligentsia “branca” brasileira) só conseguem olhar e desejar políticas para si mesmos. Desta forma, mantêm sua supremacia econômica às custas da manutenção de livros por meio de dinheiro público, veiculando assim uma ideologia racista, travestida de textos estereotipados, achincalhadores e vilipendiosos em relação à personagem negra. Ora, o que podemos claramente perceber é que os gestores, técnicos e outros responsáveis por esse programas não levam a sério a legislação brasileira e mais ainda uma educação anti-racista para todas e todos.

Cacemos sim esse racismo à brasileira e toda e qualquer obra que fere os direitos humanos e o princípio de uma existência com dignidade. Questionemos os gestores públicos que brincam com a educação brasileira e não implementam uma educação anti-racista, anti-sexista e anti-homofóbica em seus programas. Cacemos sim a supremacia branca, disseminada em posições de poder nas instâncias do governo, que desvia o foco das discussões sobre desigualdades e direitos das/os negras/os. Transformemos essa política econômica de faz de conta, mas que não faz de conta quando o assunto é PODER, ELABORAÇÃO, AVALIAÇÃO e DISTRIBUIÇÃO DE LIVROS.

O MEC e os sistemas de ensino devem rever a política de avaliação e seleção dos programas de livros, objetivando a participação de pesquisadores que trabalhem com as populações vítimas da discriminação e estereótipos nos materiais pedagógicos, determinando a participação de pesquisadores que trabalhem com as populações vítimas da discriminação e estereótipos nos materiais pedagógicos durante todo o processo. Caso contrário, não conseguiremos viver em uma sociedade democrática em que os excluídos possam ler livros com histórias complexas, belas, valorativas, diversificadas, oníricas e dignas sobre si próprios. Lobato não deixou que a branca de neve, a cinderela, o Tio Patinhas fossem os únicos ícones para o imaginário infanto-juvenil de nossas crianças, jovens e adultos. Contudo, é certo que em 1930 não fazia parte de sua perspectiva a valorização da criança negra, tampouco o fortalecimento de sua auto-estima. Assim, resta-nos a crítica, a observação, a nota explicativa à obra de Lobato ou então teremos que abandonar o discurso de valorização da diversidade e de promção da igualdade no campo da educação.

Temos direito a uma literatura infanto-juvenil que coloque a personagem negra no mesmo patamar inventivo, imaginativo, onírico, inteligente, diversificado e rico que só tem favorecido historicamente a imagem de personagens brancos. Queremos que os livros enviados para as escolas públicas propiciem uma relação estética, ética e lúdica de uma auto-imagem e auto-estima positiva para as crianças e jovens negras assim como para as crianças e jovens brancos. Queremos narrativas infanto-juvenis que realmente se configurem como narrativas que enriqueçam positivamente o imaginário da/o leitora/or . Queremos narrativas, ilustrações, riquezas de tessituras que sejam lidas apropriadamente e nos deixem encantados com os mistérios e segredos, que nos preparem para lidar com os desafios da vida. Almejamos textos que propiciem honradas formas de interação e saudáveis relacionamentos para estabelecermos convivências múltiplas com os seres vivos e não vivos que fazem parte do mundo que partilhamos.

Reivindicamos que Vossa Ex., o senhor Presidente Luis Inácio Lula da Silva, o senhor Ministro Fernando Haddad, a senhora Secretária da Educação Básica Maria do Pilar Lacerda Almeida e Silva corrijam esse erro e se comprometam com a urgente necessidade de reconhecer a existência do racismo presente em livros e materiais didáticos e combatê-los ativamente, em consonância com nossa carta magna. Outrossim, reivindicamos que vossas senhorias assumam posturas proativas, encaminhando todos os procedimentos que se façam necessários, junto ao mercado editorial, às comissões avaliadoras, aos cursos de formação de professores, entre outros.

É fato que a primeira mulher eleita presidenta da República Brasileira, senhora Dilma Roussef, sabe do impacto, dos traumas e estigmas que a volência e a tortura ditatorial brasileira imprimiu e imprime em sua vida. Há 60 anos atrás, três mulheres foram mortas violentamente durante a ditadura de Trujillo na República Dominicana. Neste dia, não queremos que nossas meninas negras candaces sejam desmoralizadas e marcadas violentamente nas salas de aulas deste país como “... uma macaca de carvão” e por outros termos racistas que já deveriam ter sido abolidos. Queremos sim que as narrativas de nossas Candaces estejam nos livros infanto-juvenis deste país.

Neste Dia internacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres protestemos contra “As caçadas de Pedrinho”, não permitamos que uma narrativa que apela para o uso de estereótipos abomináveis, além de textos e ilustrações discriminatórias contra a imagem da personagem feminina negra marque esse dia de luta. Assine o abaixo-assinado a favor do Parecer CNE/CEB Nº: 15/2010: euconcordo.com/com-o-parecer
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* Termo que quer dizer rainha-mãe e tem sido utilizado para designar o poder político- econômico, religioso, cultural, educacional e militar de rainhas africanas do reino de Meroe, bem antes da era cristã, no Egito antigo , onde hoje se localiza a Etiópia, o Sudão e o próprio Egito.

** Andréia Lisboa de Sousa. Especialista em Literatura Infanto-Juvenil. Co-autora do livro De Olho na Cultura: Pontos de Vista Afro-Brasileiros ( Prêmio do Concurso Nacional de Livro didático sobre Cultura Afro-Brasileira, Fundação Cultural Palmares e CEAO, 2005 ). Doutoranda em Educação na Universidade do Texas/Austin/USA. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP – FEUSP. Graduada em Língua e Literatura Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP. Pertence ao grupo de pesquisa: Rede Cooperativa de Pesquisa e Intervenção em (In)Formação, Currículo e Trabalho da Universidade Federal da Bahia – UFBA . Integra a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros (APN) e coordena a área de relações internacionais desta Associação. Integra a Associação Norte Americana de Pesquisa Educacional (AERA). souzaliz@yahoo.com.br


A questão étnico-racial na educação do país

A questão étnico-racial na educação do país

Antonio Carlos C. Ronca, Francisco Aparecido Cordão e Nilma Gomes*

Opinião - Folha de São Paulo
TENDÊNCIAS/DEBATES
São Paulo, quinta-feira, 25 de novembro de 2010


É preciso considerar quem são os leitores e que efeitos de sentidos, usos e funções serão atribuídos a uma determinada obra literária na atualidade


O Conselho Nacional de Educação (CNE) tem função normativa e é sua atribuição, como órgão de Estado, pronunciar-se sobre temas relativos à educação nacional. A questão étnico-racial é um desses temas.

Recentemente, a Câmara de Educação Básica (CEB) aprovou, por unanimidade, o parecer CNE/CEB nº 15/2010, com orientações quanto às políticas públicas para uma educação antirracista, no qual faz referência ao livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato.

O referido parecer foi elaborado a partir de denúncia recebida, e no seu posicionamento apresenta ações e recomendações; dentre estas, reafirma os critérios anteriormente definidos pelo MEC para análise de obras literárias a serem adotadas no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE).

Em nenhum momento a CEB cogitou a hipótese de impor veto a essa obra literária ou a outra similar, impondo qualquer forma de censura, discriminação e segregação, seja com relação a grupos, segmentos e classes sociais, seja com relação às suas distintas formas de livre criação, manifestação e expressão.

O CNE entende que uma sociedade democrática deve proteger o direito de liberdade de expressão e, nesse sentido, não cabe veto à circulação de nenhuma obra literária e artística. Porém, essa mesma sociedade deve também garantir o direito à não discriminação, nos termos constitucionais.

Reconhecendo o importante valor literário da obra de Monteiro Lobato, especificamente do livro "Caçadas de Pedrinho", mas também sendo coerente com todos os avanços da legislação educacional brasileira, o parecer discute a presença de estereótipos raciais na literatura e apresenta sugestões e orientações ao MEC, à editora e aos que atuam na formação de professores.

Uma dessas orientações é a de que a editora tome o mesmo cuidado em relação à temática étnico-racial como o que já foi adotado em relação à questão ambiental no livro, sugerindo a inclusão, na apresentação, de uma nota de esclarecimento, a fim de contextualizar a obra, sem perder de vista o seu valor literário.

Mais do que focar a análise no autor em si, o que está em questão é colocar em pauta a necessária discussão sobre a temática étnico-racial na educação e sua efetivação como política pública.

O CNE está aberto ao debate. A repercussão do seu posicionamento revela o quanto ainda é preciso falar sobre a questão racial e discutir formas de superação do racismo e o quanto esse é um tema de interesse nacional.

Os receios, as ressalvas e os apoios feitos ao parecer são compreendidos pelo CNE, especialmente no que tange à necessidade de se contextualizar obras clássicas.

Entendemos que, assim como é importante o contexto histórico em que se produziu a obra, tão ou mais importante é o contexto histórico em que se produz a leitura dessa obra. É preciso considerar quem são os leitores e que efeitos de sentidos, usos e funções serão atribuídos a determinada obra na atualidade. A obra permanece, mas os leitores e a sociedade mudam.

É em função desse novo contexto que cabe, sim, interrogar em que condições a sociedade e, sobretudo, a escola lerão obras produzidas em momentos nos quais pouco se questionava o preconceito racial e o racismo. O propósito central do parecer e do CNE é, portanto, pautar a questão étnico-racial como tema relevante da educação nacional.

* ANTONIO CARLOS CARUSO RONCA é presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE).
FRANCISCO APARECIDO CORDÃO é presidente da Câmara de Educação Básica do CNE.
NILMA GOMES é a relatora do parecer nº 15 da Câmara de Educação Básica do CNE.
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Sobre o livro “Caçadas de Pedrinho”

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Sobre o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, que foi objeto de Parecer do CNE...


A distorção do teor do Parecer, apresentada por parte da imprensa e de literatos, gerou uma polêmica e interpretações equivocadas sobre o assunto.

É importante que todos saibam que o Conselho Nacional de Educação - CNE, ao analisar as questões trazidas pela denúncia que originou o Parecer que envolveu o livro "Caçadas de Pedrinho" não excluiu, não desqualificou e não depreciou a importante obra de Monteiro Lobato.

No cumprimento de suas obrigações legais e regulamentares, tão somente recomendou e dispôs sobre cuidados quanto ao seu aproveitamento com fins educativos.

O Ministro da Educação está devolvendo o Parecer ao CNE. Isto significa que o documento será analisado, nas próximas reuniões da Câmara de Educação Básica, a fim de verificar os pontos que possam ter sido eventualmente mal-interpretados.

Por isso, a MOBILIZAÇÃO daqueles/as que entendem o teor do documento e a importância da sua homologação é FUNDAMENTAL! Vamos escrever para os jornais e revistas. Vamos apresentar a nossa opinião para que o discurso não seja apenas unilateral!

Solicitamos sua adesão ao Parecer no abaixo-assinado AQUI



O Estado Brasileiro e a proteção das crianças negras

Por um Estado que proteja as crianças negras do apedrejamento moral no cotidiano escolar

Carta aberta ao
Excelentíssimo Presidente da República Federativa do Brasil, Sr. Luís Inácio Lula da Silva,

Em um ato político e humano, Vossa Excelência ofertou asilo a Sakneh Mohammadi Ashtiani como forma de preservar-lhe a vida, visto que a mesma corre risco de ser apedrejada até a morte física em seu país, o Irã.

Se me permite a analogia, pelo exemplo que V. Exa. encarna para a Nação, creio que seria, além de político e humano, um gesto emblemático e valoroso se V. Exa. manifestasse sua preocupação e garantisse “proteção” às crianças negras inseridas no sistema de ensino brasileiro, zelando por sua sobrevivência moral e sucesso em sua trajetória educacional. Como V. Exa. já afirmou: “Nada justifica o Estado tirar a vida de alguém”, e, no caso do Brasil, nada justifica que o Estado colabore para fragilizar a vida emocional e psíquica de crianças negras, propiciando uma educação que enseja uma violência simbólica, quando não física, contra elas no cotidiano escolar. Sim, a violência diuturna sofrida pelas crianças negras no espaço escolar pode, em certa medida, ser comparada ao apedrejamento físico, visto que o racismo e seus derivados as amordaça. Assim, emocionalmente desprotegidas em sua pouca idade, as crianças passam a perseguir um ideal de “brancura” impossível de ser atingido, fazendo-as mergulhar em um estado latente, intenso e profundo de insatisfação e estranhamento consigo mesmas.

É fato que as crianças em geral não possuem natureza racista, mas a socialização que lhes é imposta pela sociedade as ensina a usar o racismo e seus derivados como armas para ferir as criança as negras, em situações de disputas e até simplesmente para demarcar espaços e territórios, bem ao exemplo dos padrões da sociedade mais ampla. A escola constitui apenas mais uma instituição social na qual as características raciais negras são usadas para depreciar, humilhar e excluir. Assim, depreciadas, humilhadas e excluídas pela prática escolar e consumidas pelo padrão racista da sociedade, as crianças negras têm sua energia, que deveria estar voltada para o seu desenvolvimento e para a construção de conhecimento e socialização, pulverizada em repetidos e inócuos esforços para se sentir aceita no cotidiano escolar.

Se há no Irã - liderados pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad - um grupo hegemônico que, embasado em uma interpretação dogmática do Islamismo e na particular percepção do que é legitimo, detém o poder de vida de morte sobre as pessoas, não menos brutal no Brasil, temos um grupo no poder que, apesar de não deliberar explicitamente pela morte física de negros e negras, investe pesadamente na manutenção da supremacia branca, advoga pelo não estabelecimento de políticas que promovam a igualdade, e nega sistematicamente qualquer esforço pela afirmação dos direitos dos afro-brasileiros.

Excelentíssimo, a supremacia branca mina as bases de qualquer perspectiva de justiça social. A eliminação do racismo e de seus predicativos depende do questionamento do poder branco, visto que a subalternização dos negros é fonte permanente de riqueza, prosperidade e garantia de poder arbitrário e absoluto. Não seria esta também uma forma de matar e de exterminar? Não estaria aí um protótipo do modelo de genocídio à brasileira?

Nossa aposta, Sr. Presidente, é que estando sob um regime democrático - ainda que permeado por estrutura historicamente racista que nega aos negros os direitos de cidadania – possamos contar com os órgãos públicos competentes no dever legal de zelar pela igualdade substantiva. Neste sentido, o Ministério da Educação (MEC) encontra-se submetido às Leis nacionais e aos Tratados internacionais promulgados pela ONU, o que legitima nosso direito de exigir que, sendo o órgão representante do Estado brasileiro no campo da educação, promova o bem estar de nossas crianças, e que não contribua, portanto, para a sua dilapidação moral.

Senhor Presidente, que legitimidade tem um governo que abraça o projeto político de “um país de todos”, mas que investe recursos públicos na disseminação de uma pedagogia racista entre os seus pequenos cidadãos? Um Estado que compra e envia para as escolas material pedagógico que contém estereótipos e preconceitos quer sejam étnicos, raciais e/ou de gênero pode ser compreendido como um Estado que fornece combustível ideológico para que a humanidade dos indivíduos tidos como ‘diferentes’ seja desconfigurada. Não nos parece que é a proposta política deste governo incentivar e disseminar ideologias racistas que promovem a deterioração da identidade e da auto-estima da criança negra.

É neste sentido, Senhor Presidente, que a contenda sobre o livro de Monteiro Lobato deve ser vista apenas como mais um episódio em que os negros aparecem como inconvenientes e não encontram solidariedade por parte dos formadores de opinião e representantes da administração pública. Talvez tais agentes fossem mais solidários com a luta anti-racista caso os materiais pedagógicos contivessem referências depreciativas em relação às suas identidades. Talvez conseguissem perceber o escárnio se as personagens obesas fossem referidas como aquelas que “comem como uma porca sebosa”. Talvez se motivassem a protestar caso um livro contivesse um padre católico apresentado como “lobo que devora criancinhas”. Talvez também fossem contrários à distribuição de obras clássicas que contivessem a idéia preconceituosa de que: “os políticos agem no escuro como ratos ladrões”.

Entretanto, Senhor Presidente, ter no livro de Monteiro Lobato personagem negra que “sobe na árvore como macaca de carvão” é visto como algo absolutamente natural e que deve ser mantido para preservar a liberdade de expressão. No fundo querem que nós negros e negras subscrevamos tal obra como um elemento histórico que, constitutivo da “democracia racial brasileira”, deve ainda ser difundido nas escolas, a despeito dos estragos que possa produzir na formação de nossas crianças brancas e negras.

Aceitar tais práticas insidiosas é negar a nós mesmos e rasgar o histórico de resistências que marca a identidade negra. Não podemos aceitar que nossas crianças negras sejam sacrificadas e usadas para o entretenimento, deleite e regozijo das crianças brancas. E nós, seus pais e educadores, lamentaríamos ver nossas crianças obrigadas a se defenderem de pedradas usando pedras contra “Pedrinhos”.

A era da inocência acabou, como nos lembra a militância negra! Os chamados textos clássicos não representam a última (sacrossanta) palavra sobre o mundo social. Não é segredo que muitos dos textos sob tal categoria são na verdade a bíblia da dominação branca-masculina-heterossexual, representando uma falsa imagem sobre quem somos. Propicia, por exemplo, que homossexuais sejam agredidos no cotidiano escolar e/ou na calada da noite, nas esquinas escuras das nossas cidades.

Uma educação que oferta estereótipos étnicos, raciais, de gênero e/ou homofóbicos facilita que jovens, ainda que supostamente “bem educados”, organizem práticas criminosas como o “rodeio das gordas”, ocorrido na UNESP ainda agora. É pelo investimento possessivo na supremacia branca, assegurado pela desumanização dos negros, que pessoas queimam índios e moradores de rua; é a partir de uma educação sexista que jovens tornam-se preconceituosos a ponto de espancar mulheres em pontos de ônibus, por acreditarem que são prostitutas. É a sistemática exposição de nossos meninos e jovens a idéias e práticas machistas que constitui terreno fértil para que quando homens crescidos, diante da percepção de ameaça a sua masculinidade, assassinem suas namoradas, esposas e/ou amantes, conforme constatamos nos nossos noticiários.

Assim, Senhor Presidente, trata-se de legítimo e necessário o Parecer do Conselho Nacional de Educação - CNE/CEB Nº: 15/2010, sobre as medidas de combate aos estereótipos e preconceitos na literatura. Não se trata de censura política, como se quer passar, mas de proteção social das nossas crianças. Pois, assim como um buquê de rosas que apesar da beleza contém espinhos pontiagudos, os livros com teor discriminatório ferem. Alguns ferem de maneira profunda e indelevelmente marcam trajetórias de vida. Logo, podemos questionar se um educador que, ao dar a rosa, alerta sobre a existência de espinhos, estaria censurando a existência da rosa e banindo-a do jardim, ou estaria apenas, responsável que é, cumprindo o dever de proteger a criança pequena?

Há que se ter cuidado com nossas crianças que, a partir da próspera administração de V. Exa., Sr. Presidente, mais cedo adentram o cotidiano escolar. Se elas entram mais cedo na escola, é fato que também experienciam mais cedo o contato sistemático com um cotidiano discriminatório, repleto de violência racial, vivendo precocemente a dor e o sofrimento de serem desumanizadas com qualificativos como “macaco” e “urubu”, assim como Monteiro Lobato dissemina em suas histórias.

Infelizmente, Sr. Presidente, nós negros adultos, ainda que tenhamos sobrevivido a esses mesmos sofrimentos em nossas histórias de vida, não conseguimos encontrar remédio eficaz para curar a dor que corrói a alma de nossas crianças pequenas. Não descobrimos ainda palavras mágicas que apaguem da memória de nossas crianças a vergonha da humilhação e do escárnio público. A valorização da beleza de nossa pele e o histórico de luta de nosso povo apenas amenizam o sangramento moral. É difícil se contrapor a um ideal de beleza e de sucesso que reserva um lugar inferior na sociedade aos indivíduos de pele negra.

Sr. Presidente, em nome de seu legado que engrandeceu este país e retirou da miséria milhões de brasileiros, não permita que, sob sua administração, mesmo nestes momentos finais, prevaleça um modelo de Educação que, apenas assentado em discursos contra o racismo e o preconceito racial, utiliza-se do poder e dos recursos públicos para a compra de materiais que veiculem estereótipos e idéias preconceituosas perniciosas para milhões de crianças, futuros cidadãos, que no futuro poderiam lembrar-se não destas “leituras”, mas sim das incomparáveis conquistas da era Lula.

Vossa Excelência que afirmou em seus discursos a importância do combate ao racismo na sociedade; que, através da primeira Lei assinada em seu governo - Lei 10.639, em 09 de janeiro de 2003, tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, observe atentamente para que os profissionais do Ministério da Educação não contradigam os seus pronunciamentos públicos. Talvez, Sr. Presidente, não haja mais tempo para corrigir o descaso desses para com as políticas de educação em áreas quilombolas, visto que os recursos empenhados no orçamento 2009, sequer, até a presente data, foram utilizados para o pagamento dos convênios aprovados, impossibilitando assim que as escolas quilombolas recebam material didático e pedagógico adequados. Certamente não há mais tempo para elaboração e distribuição de livros para subsidiar a prática pedagógica anti-racista, visto que a política foi interrompida em 2006 juntamente com o fim do Programa Diversidade na Universidade – que mesmo tendo recebido o aval positivo do BID para uma segunda edição ampliada, por ter sido avaliado como um programa modelo para a América Latina, não contou com a aprovação das gerências superiores do MEC.

Infelizmente, Excelentíssimo Presidente, não há tempo também, certamente, para lograr as metas de formação de professores e professoras para a educação das relações étnico-raciais, visto que as secretarias de educação estaduais e municipais, devido à ausência de uma consistente campanha de combate ao racismo na educação, comandada pelo MEC, pouco se engajaram para alcançar esse objetivo.

Essa triste realidade, Sr. Presidente, atesta que Fernando Haddad, Ministro da Educação, deixará, infelizmente no legado de seu governo, a triste memória de um trabalho inexpressivo no que concerne à políticas públicas para o combate ao racismo e à valorização da história e cultura afro-brasileiras. Ele que, mesmo tendo a faca e o queijo nas mãos, pouco fez para o fortalecimento da educação anti-racista e anti-discriminatória no País, encerra seu mandato sinalizando aliança com vertentes contrárias às conquistas sociais, dificultando, assim, que o Conselho Nacional de Educação cumpra o papel que lhe é devido. A devolução do Parecer CNE/CEB Nº: 15/2010 dá bem a dimensão do retrocesso político e concretiza uma velada censura às políticas de combate ao racismo pelo MEC. A atitude do Ministro Haddad traduz sua vontade política e fornece elementos para compreendermos o porquê do inexpressivo desenvolvimento das políticas anti-racistas no interior do MEC e, a partir dele, nos sistemas de ensino.

Assim Sr. Presidente, o senhor que compreende o combate ao racismo como uma luta pela justiça social, não permita que o Estado brasileiro retroceda nas conquistas dos direitos dos afro-brasileiros: não deixe sua consciência passar em branco! Relembrando suas palavras em relação à dívida do Brasil para com o continente africano: "Têm coisas que a gente não paga com dinheiro, mas com solidariedade, companheirismo e sentimentos", seja solidário à Sakneh, mas também aproveite o 20 de novembro e renove o seu compromisso com o Brasil negro. Em nome das crianças negras e brancas, em nome dos filhos do Atlântico negro, manifeste-se favoravelmente às orientações do Parecer CNE/CEB Nº: 15/2010

Respeitosamente,

Eliane Cavalleiro

Doutora em Educação pela Faculdade de Educação pela USP, 2003 – Coordenadora Executiva de Geledés – Instituto da Mulher Negra, de 2001 a 2004; Coordenadora de Diversidade da SECAD/MEC, de 2004 a 2006; ex-professora adjunta da Faculdade de Educação da UNB – de 2006 a fev/2010; Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, de 2008 a jul/2010, é cidadã brasileira, que luta para que seus netos e bisnetos e demais gerações tenham o direito a uma verdadeira educação anti-racista.


2011: como será o Brasil no Ano Internacional dos Afrodescendentes

Brasil 2011: Estado festejará Ano Internacional dos Afrodescendentes distribuindo livro racista nas escolas

Eliane Cavalleiro*

A sociedade competitiva e os preconceitos geram uma violência que deve ser combatida pela escola. Ensinar a viver juntos é fundamental, conhecendo antes a si mesmo para depois conhecer e respeitar o outro na sua diversidade. A melhor maneira de resolver os conflitos é proporcionar formas de buscar projetos e objetivos em comum, através da cooperação, pois assim ao invés de confrontar forças opostas, soma-se a diversidade para fortalecer as construções coletivas (Jacques Delors, UNESCO, MEC, Cortez Editora, São Paulo, 1999).


De acordo com Delors, a transmissão de conhecimento sobre a diversidade humana, bem como a tomada de consciência das semelhanças e da interdependência entre todos os seres humanos do planeta constituem fundamentos da educação. Entretanto, às vésperas do Ano Internacional dos Afrodescendentes, o Ministério da Educação do Brasil rejeita consideração do Conselho Nacional de Educação, que atento às Leis que regem a Educação Nacional, pondera sobre a distribuição do livro de literatura infantil Caçadas de Pedrinho (1), de Monteiro Lobato, que, originalmente publicado no ano de 1933, difunde visão estereotipada sobre o negro e o universo africano, apresentando personagens negras subservientes, pouco inteligentes, até mesmo aludindo a animais como o macaco e o urubu quando se referem à personagem negra, como no trecho: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão".

Os movimentos sociais negros há tempos reivindicam ação substantiva por parte do Estado brasileiro em políticas públicas para a educação das relações étnico-raciais. Os movimentos sociais brancos e a elite, por sua vez, recusam toda e qualquer medida que visa combater o racismo e seus derivados na sociedade brasileira. Por sua vez, identificam-se setores progressistas da sociedade que lutam pelos direitos humanos, direitos das mulheres, gays e indígenas, mas que infelizmente se calam diante da luta antirracista.

Na questão em debate, de maneira previsível, debocham da pesquisadora e professora universitária e conselheira do CNE Nilma Lino Gomes, responsável maior pelo parecer, que possui formação intelectual que não fica atrás de nossa elite branca, uma vez que possui doutorado pela Universidade de São Paulo e Pós-Doutorado na Universidade de Coimbra, sob orientação de um dos maiores nomes da intelectualidade atual, a saber, Boaventura de Sousa Santos. Mesmo com esse histórico intelectual, ela tem sido vista pelos racistas de plantão como incompetente e racista ao inverso. Isso somente reforça a obsessão pela continuidade da estrutura racista em nossa sociedade. Sobre o autor, Monteiro Lobato, nascido no século XIX, eugenista convicto, diz-se apenas ser uma referencia clássica. Certamente uma clássica escolha da elite nacional, que do alto de sua arrogância e prepotência acredita que seus eleitos sejam intocáveis e não passíveis de qualquer crítica e consideração.

O MEC tem o dever de combater qualquer tipo de situação discriminatória para qualquer grupo racial. Assim, o que deve ganhar nossa atenção nessa contenda é o fato de que mesmo o edital do PNBE/2010, estabelecido pelo MEC/FNDE, ter traçado como objetivo a “Observância de princípios éticos necessários à construção da cidadania e ao convívio social republicano” e ter estabelecido, conforme anexo III do referido edital, que “Serão excluídas as obras que: 1.3.1. veicularem estereótipos e preconceitos de condição social, regional, étnico- racial, de gênero, de orientação sexual, de idade”, temos um ministro que defende a distribuição irrestrita do livro por compreendê-lo como adequado para a educação de crianças em pleno processo de socialização.

Considerando que os doutos e doutas que administram o MEC leram Jaques Delors, Paulo Freire, Edgar Morin e tantos outros que adoram citar, não se pode alegar ingenuidade por parte da equipe diretiva do MEC, que aceitou parecer favorável à compra e à distribuição desse livro nas escolas públicas, cujo conteúdo fere o próprio edital por eles instituído. O que deve tomar o centro dessa discussão é o fato de o MEC anunciar uma política que vai ao encontro do disposto nas leis e também das reivindicações dos movimentos negros organizados, em nível nacional e internacional, mas na prática permitir o descumprimento de seu edital.

Ao ferir o edital, o próprio MEC abre precedente para que as editoras, cujas obras tenham sido excluídas por veicularem estereótipos, reivindiquem também a distribuição dos livros excluídos. Por que somente Lobato com estereótipo racial? Que tal o MEC também distribuir literatura sexista? Que tal textos com manifestações anti-semitas? Será que assim a sociedade se incomodaria?

Mas, por enquanto, mais uma vez magistralmente setores conservadores e/ou tranquilos com as consequências da discriminação racial nesta sociedade buscam inverter a discussão, de modo a que o maior problema passe a ser o tal “o racismo ao revés e a radicalidade dos movimentos negros”, e joga-se para debaixo do tapete o que deveria ser o centro da análise: o esfacelamento dos objetivos de combater a disseminação de estereótipos e preconceitos na política do PNBE, MEC.

Sejamos de fato coerentes e anti-racistas, reconheçamos a não-observação aos critérios do estabelecidos no Edital do PNBE/2010, insistamos na pergunta e exijamos do MEC uma pronta resposta: o que de fato ele tem realizado, quanto tem investido e qual a consistência e a efetividade de suas realizações, sobretudo em comparação com o que tem investido nas demais questões ligadas à diversidade e aos grupos historicamente discriminados? Dos livros selecionados pelo PNBE 2010, quantos favorecem a educação das relações de gênero? Quantos promovem o conhecimento positivo sobre a história e cultura dos povos indígenas? Se o MEC tivesse respeito por nós, seríamos informados sobre o cumprimento das metas para a implementação do artigo 26ª da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Lei n. 9394/96), que se refere à obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras, indo ao encontro de tratados internacionais como a Convenção Contra a Discriminação na Educação (1960) e o Plano de Ação decorrente da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância Correlata (2001), ambos sob os auspícios da Unesco.

Em 17 de abril de 2008, em entrevista à Agência Brasil, apos receber críticas sobre o retrocesso nas políticas para o combate ao racismo, o diretor do Departamento de Educação para Diversidade e Cidadania do MEC, Armênio Schmidt, confirmou a suspensão da distribuição de material didático e de ações de formação de professores na área étnico-racial em 2007. Segundo ele, a interrupção, apenas externa, nas ações voltadas à questão racial ocorreu por causa das mudanças no sistema de financiamento do MEC. Para o diretor tal suspensão se justificava pelo fato de o MEC estar, em 2007, “construindo uma nova forma de indução de políticas, de relação com estados e municípios, que foi o Programa de Ações Articuladas”. Para ele: “Durante [aquele] ano ... [2007] realmente não houve publicações e formação de professores. Mas, na nossa avaliação, não houve um retrocesso, porque isso vai possibilitar uma nova alavanca na questão da Lei [10.639]. Agora estados e municípios vão poder solicitar a formação de professores na sua rede, e o MEC vai produzir mais publicações e em maior número”(2).

Em 2010, além de não percebermos o fortalecimento da política, tampouco a retomada das publicações e uma consistente e sistemática formação de professores, flagramos o MEC permitindo a participação de livro cujo conteúdo veicula estereótipos e preconceitos contra o negro e o universo africano, constituindo assim flagrante inobservância das normas estabelecidas.

O atual presidente Lula, em seu começo de mandato, evidenciou, no campo da educação, a importância do combate ao racismo, promulgando a Lei 10.639/03, que, como já mencionado, alterou a LDB, tornando obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileiras na Educação Básica. Tal alteração contou com a pronta atenção do CNE, que, sob responsabilidade da conselheira Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, elaborou as Diretrizes Curriculares Nacionais para o ensino das Relações Étnico-Raciais e de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (CNE/CP 3/2004), cuja homologação foi assinada pelo então ministro da Educação, Tarso Genro. Contudo, embora conte com 83% de aprovação por parte da população e tenha ao longo de seu mandato visitado várias vezes o continente africano e discursado eloquentemente sobre a necessidade de reconhecimento do valor dos afrodescendentes na formação de nosso Estado Nacional, ele encerra seu mandato permitindo um declínio acentuado na elaboração e na implementação de políticas anti-racistas no campo da educação.

Se em 2003 podíamos reconhecer, ainda que timidamente, o fato de o combate ao racismo fazer parte da agenda política brasileira; em 2010, devemos denunciar o descompromisso com essa luta. Descompromisso que pode ser percebido pela redução acentuada do orçamento para a educação das relações raciais, pelo enxugamento da equipe de trabalho da Coordenação Geral de Diversidade e Inclusão Educacional/SECAD/MEC, responsável pela implementação das ações de diversidade étnico-racial. Ainda vale ressaltar que houve a retirada do portal de diversidade da rede do MEC; a interrupção de publicações sobre o tema para a formação de profissionais da educação, pelo frágil apoio que das secretarias de educação para o cumprimento do proposto no parecer CNE/CP 3/2004. Essas constituem algumas referências negativas, entre várias outras apontadas pelos estudos sobre o tema.

Nós negros, cidadãs e cidadãos, que trabalhamos duramente longos anos para a eleição do presidente Lula esperávamos mais. Esperávamos mais tanto do presidente quanto da sua equipe executiva que administra a educação brasileira. Esperávamos minimamente que ao longo desses anos a equipe tivesse compreendido o alcance e o impacto do racismo em nossa sociedade. Esperávamos que eles, respeitando os princípios de justiça social, independentemente dos grupos no poder, emitissem manifestações veementes pelo combate ao racismo na educação. Pelo visto as promessas de parcerias e acolhimento das nossas considerações eram falsas.

O que temos como resposta, para além do silêncio de toda Secretaria de Educação, Alfabetização e Diversidade, é o posicionamento por parte do ministro, que não vê racismo na obra, colocando-se favorável à sua distribuição irrestrita, que, em companhia de outros elementos no cotidiano escolar, sabemos, contribuirá para a formação de novos indivíduos racistas, como já se fez no passado. Sem dúvida, o discurso do ministro mostra-se engajado com sua própria raça, classe e gênero. O mais irônico é saber que em pleno século XXI o Brasil será visto como um país que avança na economia e retrocede nos direitos humanos da população negra.

Muitos admiram Monteiro Lobato. Eu admiro Luiz Gama que se valeu das páginas da imprensa em defesa da liberdade dos escravizados e disse, sintetizando nossa ainda atual resistência cotidiana: “Em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu senhor, pratica um ato de legítima defesa”. O conhecimento é a arma que dispomos para lutar pela defesa de nossa história, nossa existência, bem como do futuro de nossos filhos e filhas. Essa é uma luta desigual, portanto desonesta. Mas ainda que muitos queiram nosso silêncio, seguiremos lutando e denunciando essa forma perversa de racismo que perdura na sociedade brasileira.

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Notas

(1) Tal obra foi selecionada pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola/2010, que objetiva a “seleção de obras de apoio pedagógico destinadas a subsidiar teórica e metodologicamente os docentes no desenvolvimento do processo de ensino e aprendizagem nos respectivos campos disciplinares, áreas do conhecimento e etapas/modalidades da educação básica” (Brasil. Edital PNBE 2010. Brasília: MEC/FNDE, 2010).

(2) Agência Brasil. Pesquisadora aponta retrocesso na política de combate ao racismo nas escolas. Disponível AQUI. Acessado em: novembro de 2010.

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Os grifos são de MLG
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* Eliane Cavalleiro é Doutora em Educação - USP. Foi consultora UNESCO - Oficina Regional de Educação para América Latina e Caribe/OREALC, responsável pelo desenvolvimento da pesquisa: Discriminación y Pluralismo: Valorando la Diversidade em la Escuela. Atuou como Coordenadora Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – MEC (2004 a 2006). Livros: Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil, Contexto, 2000; Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola, Selo Negro/Summus, 2001; Veredas das noites sem fim: socialização e pertencimento racial em gerações sucessivas de famílias negras , Editora UNB. Docente na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília-UNB, tutora do Programa de Educação Tutorial (PET) da Faculdade de Educação. Foi Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as).

Lobato e a caçada ao racismo verde-amarelo

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Lobato e a caçada ao racismo verde-amarelo

Heloisa Pires Lima*

A polêmica em torno das personagens lobatianas, após o parecer emitido pelo Conselho Nacional de Educação (set 2010), ganha qualidade se considerar os vários ângulos dessas construções. Primeiramente, o contexto primordial criador dos enredos. O escritor nascido em 1882 cresceu numa fazenda de café do Vale do Paraíba, na província de Taubaté. Quando moço é para lá que voltaria, durante os estudos na faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital. O guri branco vivenciou as dinâmicas escravistas pouco alteradas na República que engatinhava. Nesse tempo, esteve exposto aos argumentos racialistas que ganharam status de ciência para a vida intelectual e artística da qual se tornou freqüentador. Suas biografias não deixam de mencionar a importância do pensamento eugenista de Le Bon, como lentes para ele rever o ambiente rural onde encontra, inclusive, seus Jeca Tatus.

E foi como colaborador da Revista do Brasil que Lobato levou o empurrão do folclore, das lendas, dos mitos populares para suas aventuras junto ao setor editorial. Ele descobre uma fonte rica de temas que afirmará como particularidade nacional frente ao seu incômodo com a excessiva presença de figuras da mitologia européia oferecidas às crianças do país. E é para o Saci, que em 1917, ele desenvolve um questionário e um concurso de pintura como tarefa em busca de uma nova mentalidade nacional, nos seus termos. Mais tarde transformado em livro, lá estarão o tio Barnabé dando voz às lendas de origem africana que, segundo ele, povoavam o imaginário popular. Da mesma forma, a tia Nastácia com seu inventário culinário. Por um lado, a condução de Lobato dá status e integra personagens negros que a sociedade excluía deixando uma peculiar presença negra no universo da literatura infanto-juvenil. O mote também é uma crítica à literatura estrangeira e à produção elitista disponibilizada, na época. Por outro, o material é testemunha ocular de uma espécie de abordagem na arquitetura de figuras negras e o lugar onde foram posicionadas na lógica interna das narrativas.

As imagens dos tipos ficcionais, sempre carregadas de sinais, embutem modelos de humanidade que por sua vez, constroem identidades sociais. Se o ponto de vista de Lobato pode ser acompanhado na redação das histórias que ele assina, da mesma forma nos desenhos que as interpretam e que acabaram selecionadas para as publicações produzidas em seus poços literários e que continuam a abastecer bibliotecas, videotecas, acervos de brinquedos e brincadeiras no país. A perspectiva dos ilustradores dos livros de Lobato facilita observar o tema racismo, de modo mais distanciado. Ou seja, é uma estratégia para diminuir a resistência característica para a questão em obras consagradas.

O treino minucioso pode começar delimitando a postura corporal das personagens, a expressão facial, o tratamento na cor da pele, o relacionamento entre demais figuras em cena, a qualificação atribuída ao cenário das quais participam. Estes, entre outros, são fios a compor o ponto de vista que o analista quer conhecer. Por exemplo, o assunto tratado em Narizinho Arrebitado (1920) aparece implicado às noções de saberes, o erudito e o popular, encarnados em duas mulheres representadas pelo traço de Voltolino. (referência imagem 1)

Desta primeira edição dá até para afirmar a existência de uma relativa equanimidade de tratamento para ambas o que pode ser observado na forma como ele vestiu as mulheres, moldou a expressão da face, a hierarquia na estatura, a composição que comunique afetividade. Isto se acompanharmos o que ocorreu, posteriormente, com interpretações de alguns outros ilustradores da mesma redação. A Nastácia pode se tornar monstrenga ou suja como nas seguintes versões. (referência imagens 2)

Na figura, elaborada por Manoel Victor Filho em Trabalhos de Hércules (1972), a estrutura do rosto da mulher negra aparece co-relacionada com a do porco Rabicó. Contraposta aos demais personagens insuflados de humanidade, sua Nastácia recebe uma expressão facial mais idiotizada a acompanhar a bestialização a ela imposta. Portanto, nessas páginas nem mesmo como modelo de humanidade ela é oferecida ao leitor. O que a desumaniza também a coloca mais próxima da chacota. Se o resultado perfila a hierarquia social entre os personagens, a vertente negra africana que ela representa, também estará sendo desqualificada e ridicularizada. O narrador da visualidade julga e desvaloriza a origem social com o tratamento que dá ao tema. (1) (referência imagem 3)

Estas breves ocorrências relacionadas à Lobato seriam suficientes para ponderar acerca das imagens que circularam para leitores juvenis d´outros tempos. Os sinais positivos ou negativos que acompanham as ilustrações fizeram parte de uma rede simbólica que atingiu diretamente a percepção não apenas das pessoas reais de outrora. Tais identidades espelhadas nessa descendência repercutem até os dias atuais. Oras o passado! Será que o lá atrás vivenciado desapareceu ou permanece em algum lugar do imaginário social? Nem sempre tão lá distante assim, as formas lúdicas sustentaram criadouros de correntes de pensamento a identificar parcelas da população. O aparato simbólico que para a origem européia valoriza positivamente os traços fenotípicos não deixa de informar como contraponto, uma origem africana. A composição foi uma arma a fomentar estigmas.

A representação do Saci lobatiano pode ser explorada para demonstrar os vínculos entre a resposta particular numa autoria e o circuito cultural que a gerou. O detalhe da primeira capa do livro O Saci pererê: resultado de um inquérito, com ilustrações internas de Voltolino, expõe a interpretação do desenhista para o qual poderiam caber inúmeras leituras. Talvez o barrete com o qual vestiu a cabeça da figurinha preta pudesse estar associado aos ícones revolucionários radicais europeus ou ao trickster africano símbolo de dinamismos e liberdade irrestrita. É mais provável que um brasileirinho lesse a demonização da figura recolhida do folclore. Lá estão os chifres e a ferocidade estampada no rosto assustador com dentes vampirescos. O próprio Lobato assina a obra com o pseudônimo de Um Demonólogo Amado. (referência imagem 4)

O discurso visual com o Saci poderia ter a intenção de resgate cultural. No entanto, hoje, o saci preto e imbricado às idéias cristãs de maldade é material que promove desqualificações culturais associativos à origem negra.

Cada elemento visual ou seu conjunto sintetiza e emaranha crenças no momento de sua criação. Todavia, não há leitura única na recepção da mensagem. Se num contexto a capa pode significar ruptura e avanço, noutro pode facilitar desvalorização e conservadorismo. E haveria diferença ou tanto faz a capa ser percebida por um adulto ou uma criança a partir da simples exposição do livro numa prateleira? Seria possível levantar fatores para como cada qual processaria a instauração do recado valorativo e suas conseqüências de ordem afetiva nessa comunicação?

Portanto, toda a busca de compreensão da obra infantil ou juvenil como espelho para elaborações de ordem emocional presume o fato de ali haver um espaço para o leitor reconhecer a si mesmo ou o outro. O apreço auxilia na promoção da auto-estima e a dos afetos a elaborar alteridades. Por isso há de haver sensibilidade para considerar o poder de difusão de preconceitos e estereotipias que uma imagem pode conter.

Para a habilidade do analista, se já foi lançada a hipótese do leitor das imagens ser uma criança, acrescentemos a circunstância social de ser ela uma criança negra em processo de elaborar sua origem numa escola da época de Lobato. A via literária estaria fornecendo elementos para uma auto- percepção e de suas raízes negras. Além do mais, esse leitor negro teria que lidar com outras crianças, que o perceberiam com o auxílio de uma biblioteca que o constrangeria. A exposição a tamanha violência, nesse caso simbólica, faz saltar aos olhos o destrato hipotético de um preceito educacional e de alto valor nos nossos dias: a eliminação de constrangimentos para o pleno desenvolvimento das personalidades em formação. Os preceitos educacionais atuais responsabilizariam o dos velhos tempos pelo incômodo imposto ao educando.

As Nastácias desqualificadas lá atrás trazem para cá nuanças que dizem respeito, às idéias associadas de superioridade e inferioridade racial. A figura feminina boçalizada e o saci demonizado serviriam perfeitamente para qualquer manual de nossos tempos que discorresse a respeito de como se formam os pensamentos xenófobos.

O mesmo exercício de leitura dos trechos visuais renderia caso o alvo fosse as imagens construídas por meio da escrita de Lobato. Todavia, vale deslocar a ênfase nos textos pioneiros do autor. Para não correr o risco de etiquetar toda a obra por um de seus aspectos, mais importante é fazer notar o leitor inserido numa e outra sociedade. É o ambiente social que promove ou impede a circulação de fórmulas racistas para a geração a ser formada. Por sua vez, um público com pouca maturidade. O jovem exposto à agressão é quem merece destaque. Pouca idade e poucos elementos para se defender do ataque violento. É ao adulto e à sociedade madura a quem cabe a proteção e a responsabilidade frente a circulação desatenta do ataque físico ou moral da pessoa jovem.

O treino de perceber a particularidade de um jovenzinho negro submetido à agressões inclui a singular via literária. A questão atinge em cheio o setor editorial com a demanda vinda dos meios educacionais, sobretudo a partir da conquista histórica da Lei 10639/2003 que integra o tema racismo no debate pedagógico maior. Pois embora algumas teorias racistas tenham sido banidas do mundo adulto e refutadas por acadêmicos maduros, veja que podem adquirir, nos aparentemente ingênuos formatos de livro infantis, canais para fixar preconceitos, estimular estereotipias e evocar atitudes discriminatórias. Todo projeto editorial tem seus propósitos. Quando relançam obras do passado surge a pergunta implacável: O que significa reaplicá-las hoje para um público juvenil? Se mostrar alheio ao fato de algumas obras se aliarem à condenação da religiosidade de matriz africana, ou à facilitação de apelidos promovidos pelos compêndios é reificar a invisibilidade, por que não dizer a irrelevância da recepção racista para o leitor negro.

Caso propuséssemos ao adulto de hoje que buscasse a memória de personagens que habitaram a literatura a qual teve acesso, aqueles que preencheram afetivamente, sua infância seria uma chave para dimensionar o que ocorre com a criança de hoje. Da mesma forma que esse percurso pessoal, a sociedade acumula repertórios assentados como camadas de um imaginário coletivo a intervir na identidade histórica que esta imagina para si. Vale alertar, ainda, para a desproporção entre referências oferecidas ao leitor numa e noutra origem continental, seja asiática, indígena americana, do oriente, dos pólos da terra oferecidos nas antigas bibliotecas dos brasileiros. Sobretudo ao cotejarmos com universos temáticos que esbanjam a origem européia. Isto quer dizer que a presença negra nas foi rara e quando ocorreu foi marcada por abordagens ficcionais pouco positivas para elaboração de identidades acerca da parcela negra da população real.

Perceber o racismo verde-amarelo em sua dimensão editorial talvez seja a oportunidade que a polêmica em torno de Lobato ofereça para escaparmos de uma armadilha reflexiva. Evocar a época da produção não pode se tornar autorização para fecharmos os olhos às agressões que ela possa conter. Se eliminar o passado é inviável enquanto historia do livro no país, também não basta reconhecer a estrutura criativa dos textos. Todavia, uma visão parcial pode eleger as exaltações que o mundo literário confere ao consagrado Lobato e promover uma espécie de impedimento para a compreensão da obra em sua totalidade. E, fundamentalmente negadora da presença de estereótipos no material. Ao invés do temor, de transformar em tabu qualquer análise, voltar aos Lobatos do passado pode propiciar ângulos inéditos a enriquecer a relação atual com essa literatura. Significa apostar no dinamismo da leitura que uma obra propicia e viabilizar a crítica sadia.

Se realidade e representação são faces de uma mesma moeda, se uma influencia a outra e vice-versa ao contrário, poderia dizer uma personagem desse cenário, o fato é que há uma demanda educacional interlocutora da produção editorial. Se o diagnóstico sobre o excesso de representações pejorativas desqualificando insistentemente as referências à população negra no Brasil o que fazer quando estas voltam ao futuro?

Como entraremos nessa aventura? Caçadas de Pedrinho (original de1933) é o título analisado com a responsabilidade que o Conselho Nacional de Educação chama para si. A relatora Nilma Gomes perfila a questão do racismo na Educação Nacional para o parecer que atrela uma série de medidas cautelares para a circulação da obra. O objetivo de promover uma educação anti-racista prevê a formação do educador para a introdução de tais conteúdos. Há de se aplaudir a iniciativa. Pois quando o inquestionável, aquilo que sempre passou despercebido cessa de sê-lo, quando a agressão deixa de ser naturalizada e a negação perde força para assumir enfrentamentos temos uma pista de saúde social e uma chance para conviver com a arte de outros tempos. Pois um dos limites à liberdade irrestrita dessa circulação é o racismo dirigido à tenra idade. A caça é aos racismos ignorados e não à obra ou seu autor. O desafio está colocado para a sociedade. E sobretudo, aos circuitos editoriais que terão que encontrar formas de respondê-lo.

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* Antropóloga doutora titulada pela USP, criou e foi editora da Selo Negro Edições e é autora, entre outros, de Histórias da Preta (1998,Cia das letrinhas) e Lendas da África Moderna (2010, Elementar). Consultora da série Livros Animados- TV Futura Programa acorda cultura.

(1) IMA, H. P.. Personagens negros: um breve perfil na literatura infanto-juvenil. In: Kabengele Munanga. (Org.). Superando o racismo na escola. 2 ed. Brasília: Secad-Ministério da Educação, 2001


sábado, 13 de novembro de 2010

Comunidades Quilombolas RJ - a caminho da legalização

Incra identifica comunidades quilombolas no Rio e se prepara para disputa com Igreja Católica

Isabela Vieira
Repórter da Agência Brasil
05/11/2010


Rio de Janeiro - O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no Rio de Janeiro reconheceu como remanescente de quilombo a comunidade da Pedra do Sal e estabeleceu os limites para a emissão do título de posse. A portaria foi publicada no Diário Oficial do Estado do Rio da última quarta-feira (3 de novembro de 2010). No documento, também consta a identificação das comunidades de Cabral, com 50 famílias, no sul fluminense, e Sacopã, com 13, na zona sul da capital.

Instalada na zona portuária por onde devem ter desembarcado cerca de 1 milhão de africanos escravizados, atual cenário de um dos maiores projetos de revitalização da cidade do Rio para a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, as 25 famílias da comunidade Pedra do Sal disputam a posse de suas casas com a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência (VOT) e devem enfrentar um processo complicado até a emissão do título de posse.

Elaborado com base em laudos antropológicos, o documento do Incra declara que as famílias da Pedra do Sal são donas de uma área de 3.534 metros quadrados onde estão imóveis da Venerável Ordem Terceira, ligada à igreja Católica. A instituição alega ter herdado, de dom João VI, os terrenos, onde atualmente desenvolve projetos sociais, mas, segundo o Incra, não há documentos que comprovem essa doação. Procurada, a instituição não respondeu à Agência Brasil.

O superintende do instituto no Rio, Gustavo Souto, explica que as informações levantadas indicam que a área onde estão as famílias pertencem à União. Segundo ele, com a publicação do relatório, a VOT terá 90 dias para contestar os dados e deve procurar a Justiça, assim como já fez anteriormente, na tentativa de barrar a regularização fundiária da comunidade.

O quilombo de Sacopã (Família Pinto), localizado na Lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul, também deve enfrentar um processo contra os vizinhos, antes de conseguir o título de posse do terreno, assegurado pela Constituição às comunidades remanescentes de quilombo. Segundo o superintendente, "os moradores do bairro, um dos mais nobres da capital, já demonstram nos argumentos preconceito infundado contra os vizinhos quilombolas".

"Se ninguém contestar nada, se não houver um processo judicial longo, fora do controle do Incra, os títulos das três comunidades saem no próximo ano. Mas o mais provável são contestações contra Sacopã e Pedra do Sal. Já Cabral, em Paraty, deve trilhar um caminho mais simples", afirmou o superintendente.

Mesmo diante de mais uma disputa, os remanescente da Pedra estão confiantes, pois a VOT perdeu na Justiça outros processos contra a comunidade. "Passamos apertos, com desocupações forçadas e ameaças até a finalização do relatório [do Incra]. O fato de ele ter sido publicado é uma grande vitória", declarou o presidente da Associação de Moradores, Damião Braga.

Conhecida como Pequena África, a zona portuária do Rio é marcada por elementos da cultura afro-brasileira. Além do quilombo, abriga um antigo cemitério de escravos e o monumento à Pedra do Sal. No local, os estivadores, negros recém-libertados, descarregavam o sal e se reuniam em rodas de samba. Ali surgiram nomes como Donga, Pixinguinha, João da Baiana e Heitor dos Prazeres.

Atualmente, no Largo da Pedra do Sal, sambista se encontram duas vezes por semana.

Edição: Graça Adjuto
Extraído de Agência Brasil


Contato com ARQPEDRA - Pedra do Sal
  • Damião Braga Soares dos Santos
  • Presidente do Conselho Diretor da ARQPEDRA - Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal
  • Vice-presidente da ACQUILERJ - Associação de Comunidades Remanescente de Quilombos do Estado do Rio de Janeiro
  • Militante do MNU
  • Frente Nacional em Defesa dos Territorios Quilombolas