quarta-feira, 28 de abril de 2010

Feminismo: pluralismo, diferenças e concepções

Feminismo: pluralismo, diferenças e concepções.

Entrevista com Helena Hirata
IHU - Unisinos * - 27.04.10

Adital - Em seu mais recente livro Dicionário Crítico do Feminismo (São Paulo: UNESP, 2010), Helena Hirata busca dissecar termos relacionados ao mundo das mulheres e, assim, mostrar os significados de questões como opressão, dominação masculina, aborto e contracepção, assédio sexual, prostituição, maternidade e movimentos feministas. "A relação entre homens e mulheres oculta uma questão importante que é a hierarquia social. Se considera que os homens são superiores às mulheres e, portanto, daí decorre toda uma série de diferenças entre eles. É essa hierarquia que tem que ser questionada", explica a autora durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line por telefone.

Hirata também analisou questões como o pensamento crítico feminista, as diferenças entre as mulheres de diferentes profissões e a divisão sexual do trabalho. Quando analisa a participação das mulheres no grupo conhecido como Geração Y, formada por jovens bem informados, questionadores e com sede de subir na carreira, ela diz que "certamente existem mulheres dentro deste grupo, mas aparentemente todos os estudos sobre hackers e sobre os que têm uma atividade muito intensa em termos de uso da Internet consideram que esta área é majoritariamente ocupada por homens".

Helena Hirata é professora na Universidade Estadual de Campinas, onde pesquisa Sociologia do Trabalho e do Gênero.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Seu mais recente livro chama-se Dicionário Crítico do Feminismo...

Helena Hirata - Na realidade, nós queríamos que muitas pessoas que não são especialistas na questão de gênero, do feminismo, da diferença entre os homens e as mulheres, da questão da opressão, da dominação masculina etc. pudessem ter acesso de maneira simples, clara, a toda uma série de definições sobre termos do mundo das mulheres. Nesse sentido, há um verbete no livro sobre aborto e contracepção, assédio sexual, prostituição, maternidade, movimentos feministas. Então, há uma série de verbetes que apresento, em cinco páginas, com quatro ou cinco bibliografias básicas. Cada verbete é dividido em quatro partes: uma é a definição do termo - que vai desde termos relacionados ao feminismo até termos de sociologia e economia do trabalho -, depois apresento uma história desse termo, ainda o debate e controvérsias relacionadas ao tema, e o quarto aspecto é a atualidade social e científica deste assunto.

A questão do feminismo que esse livro toca mostra que é muito importante que todas as questões relacionadas às diferenças de sexo são políticas. São temas que têm conteúdo político, porque tudo o que é pessoal é político. E a relação entre homens e mulheres oculta uma questão importante que é a hierarquia social. Se considera que os homens são superiores às mulheres e, portanto, daí decorre toda uma série de diferenças entre eles. É essa hierarquia que tem que ser questionada e, assim, o Dicionário Crítico do Feminismo é um instrumento para apreciar o conteúdo e os limites dessa hierarquia para que possamos pensar numa nova divisão do trabalho.

IHU On-Line - Como você vê hoje o pensamento crítico feminista?

Helena Hirata - Eu acho que há muitos feminismos, existem muitos movimentos feministas. O feminismo é um movimento plural, pois há pessoas ali dentro que são contra o aborto, há feministas que acreditam que a prostituição pode ser regulamentada, além de pessoas que são contra o véu islâmico. Na França, hoje, o movimento feminista mais dominante é o que chamamos de feminismo socialista que se preocupa com uma igualdade maior de salários, de condições de trabalho etc. No Brasil, o que tenho visto, por exemplo, também são reivindicações mais universalistas do que diferencialistas que considera que homens e mulheres agem de forma diferente e, portanto, merecem espaços distintos. As universalistas, por sua vez, acham que deve haver uma tônica maior na questão da igualdade.

IHU On-Line - No mundo do trabalho, a forma de enxergar a mulher cuja área em que atua é o chão de fábrica e a que trabalha na área administrativa é diferente?
Helena Hirata - Elas têm uma situação de trabalho e são vistas de maneira diferente. Ainda hoje as que trabalham no chão de fábrica têm sua profissão menos valorizada socialmente do que as profissões de ‘colarinho branco’, que trabalham em escritório, num ambiente de trabalho que é menos controlador. Ainda assim, há mais solidariedade e possibilidade de lutas entre as mulheres que estão organizadas no chão de fábrica, como operárias. Um exemplo disso foi esse segundo Congresso da Mulher metalúrgica que houve em São Bernardo, no sindicato dos metalúrgicos do ABC em março deste ano.

IHU On-Line - O que representa para a sociedade a participação feminina em lideranças de movimentos sociais e trabalhistas?
Helena Hirata - A participação das mulheres na sociedade é algo muito importante para a riqueza do país porque, se elas não efetuassem gratuitamente certas tarefas, isso teria que ser comprado no mercado e teria que se remunerar esse trabalho. O que criaria um problema de despesas tanto familiares quanto sociais e públicas. De uma maneira geral, existem movimentações sociais em que as mulheres estão inseridas, mas, em primeiro lugar, o mais importante é ver como elas são importantes para a criação de toda uma série de riquezas que, se não fossem as mulheres que estivessem fazendo de graça, o país teria um grande problema financeiro.

IHU On-Line - Quais os pontos fortes da reflexão sobre o trabalho do cuidado, desempenhado especificamente pelas mulheres?
Helena Hirata - O mais importante é que são as mulheres, majoritariamente, que fazem este tipo de trabalho. O fato delas fazerem o mesmo tipo de trabalho e cuidado com pessoas idosas, doentes, com deficiência física e com crianças, de maneira gratuita dentro de suas casas, faz com que esse trabalho seja muito desvalorizado e mal pago. Ao mesmo tempo, o fato de que as mulheres começam a trabalhar de maneira remunerada, mesmo mal pagas, nestes tipos de trabalhos, paradoxalmente, visibiliza um trabalho doméstico, até então efetuado de maneira privada e invisível. Isso mostra que esse trabalho não é feito gratuitamente, tem que ser remunerado e mercantilizado. A externalização do trabalho doméstico, que antes era feito por amor ao marido, ao companheiro, pode ser um lugar de valorização deste trabalho. Esse trabalho é muito importante, por que se desenvolveu e se desenvolve enormemente hoje, sobretudo dado a tendência demográfica do envelhecimento e da longevidade cada vez maior das pessoas idosas em todo o mundo, inclusive no Brasil, e isso faz com que esse trabalho seja cada vez mais significativo na sociedade contemporânea.

O outro ponto importante neste trabalho, que é fundo do debate teórico, é que muitas pesquisadoras e especialistas no tema dizem que precisamos superar o enfoque de gênero quando falamos de cuidado. O que falei é que há diferenças entre homens e mulheres, e são as mulheres que fazem este tipo de trabalho, que se sacrificam e ganham pouco, que têm um trabalho invísivel, mas que pode ser visibilizado. Ora, as pesquisadoras e teóricas, que trabalham sobre a ética, a política e a moral deste tipo de trabalho, irão dizer que, na realidade, não é a questão de gênero que é principal na problemática do care, mas que mostra que todas as pessoas irão ser dependentes em algum momento do ciclo de vida delas, e, portanto, isto deve ser uma preocupação universal. Segundo elas, todos devem fazer este tipo de trabalho, porque concerne a todos. Hoje, nós adultos, somos independentes, autônomos e nos orgulhamos disso, mas não seremos sempre assim. Já fomos dependentes quando pequenos, seremos em momentos de doença, e seremos dependentes, forçadamente, a partir de um certo momento da vida, pela idade mais avançada. Acho que essa é uma das questões mais importantes, desenvolvidas pela problemática deste tipo de trabalho, é a questão universal, que ultrapassa o gênero, e trata do humano.

IHU On-Line - A Divisão Sexual do Trabalho é um dos seus temas de estudo e também um dos verbetes na obra. Qual é a importância dessa discussão atualmente?
Gloria Macapagal Arroyo é a atual presidente das Filipinas. É a segunda presidente de seu país depois de Corazón Aquino.

Helena Hirata - Até hoje, se falou muito no trabalho profissional dos homens e mulheres e na igualdade de salários que seria necessária, já que os sálarios masculinos e femininos são muito díspares em todo o mundo, embora sejam mais igualitários em um país europeu como a Suécia, e muito desigualitário em um país asiático como o Japão. Para além dessas discussões sobre desigualdade de salários e na profissão, a questão da divisão sexual do trabalho remete a ideia de que há uma divisão entre os sexos, tanto no terreno do trabalho quanto no do saber e do poder, e que tudo isso é indissociável. Não podemos pensar na situação das mulheres no campo, puramente, do trabalho, sem pensar na situação das mulheres no campo do trabalho doméstico, do saber, do poder e na divisão das capacidades de decisão e responsabilidade nos governos, parlamentos e diferentes campos das instituições. Quando digo que há pouca perspectiva de gênero nesses diferentes âmbitos de poder, não é pelo fato de que, se tem uma mulher em cada governo, isso irá mudar frontalmente as coisas, isso é demonstrado pela Gloria Macapagal Arroyo, nas Filipinas, pela Cristina Kirchner, na Argentina ou Michelle Bachelet, no Chile. Houve e há mulheres presidentes, que são uma minoria, mas não é porque são mulheres que tudo muda de repente, as políticas não mudam de uma hora para outra. É necessário que haja divisão sexual do trabalho. O grupo social dos homens e das mulheres deve ser modificado, porque um indivíduo não vai mudar, frontalmente, essas coisas.

Cristina Kirchner e Michelle Bachelet

No verbete Divisão Sexual do Trabalho e Relações Sociais de Gênero, a Danièle Snotier tem uma tese importante. Ela diz que o trabalho e a divisão sexual deste é o que está em jogo nas relações sociais entre os homens e mulheres. Eles lutam pela repartição desse trabalho profissional e doméstico, e, enquanto não houver uma mudança na divisão sexual do trabalho, a desigualdade, dominação, opressão e exploração das mulheres pelos homens vai continuar.

IHU On-Line - Em se tratando de divisão sexual do trabalho, há uma vulnerabilidade provocada socialmente pelo casamento?
Helena Hirata - Muitas teóricas do feminismo irão dizer que o casamento é uma maneira de criticar essa situação de desigualdade e poder. Dizem que os homens casando, de certa forma, se apropriam, não só das mulheres, mas do corpo delas e de sua disposição. Assim, portanto, elas vão se tornar, com o casamento, uma espécie de prostitutas, já que elas são dependentes economicamente, e são sustentadas pelo marido em troca de diversos favores, inclusive sexuais. Há toda uma análise que é feita por antropólogas e por sociólogas. Há uma série de autores que, de certa forma, analisam casamento e prostituição como sendo duas faces de um mesmo tipo de poder e opressão dos homens sobre as mulheres. Acho que essa discussão é totalmente atual, e a questão da vulnerabilidade se coloca inclusive em sociedades em que as mulheres deixam de trabalhar, ou não podem trabalhar, por que devem se dedicar aos filhos, a casa etc. Elas se tornam vulneráveis na medida em que dependem totalmente das rendas do marido, e, portanto, são vulneráveis em situação de ruptura, quando se divorciam, por exemplo, e em situações em que elas continuam sobre o julgo do marido, porque dependem completamente deles para tudo que desejem realizar como projeto. Acho que os estudos sobre precarização social e do trabalho, com muito raras exceções, não veem os indicadores, essas variáveis de vulnerabilidade.

IHU On-Line - A figura da mulher executiva tem crescido nessas últimas duas décadas. Qual a sua visão sobre isso?
Helena Hirata - Hoje existe toda uma análise de escolas e pensamentos feministas que denomina essa tendência de polarização de emprego feminino. Há dois pólos, um mais valorizado e reconhecido, com salários relativamente altos e muitas responsabilidades. Da população feminina, 10% tem esses "bons empregos" e 90% cumpre funções relacionadas com o que elas fazem em casa, como as empregadas domésticas, enfermeiras, auxiliares de enfermagem, professoras etc. Esses dois grandes pólos fazem com que haja uma categoria de mulheres que tenha um tipo de comportamento de atividades contínuas, longas horas de trabalho, viagens e consequentemente pouca possibilidade de cumprir plenamente os papéis sociais atribuídos à mulher. Então, essa figura da executiva está criando uma consequência que é a necessidade cada vez mais de outras mulheres de camadas populares que não têm as mesmas necessidades de estarem presentes na vida das famílias. A carreira profissional de uma depende da carreira de outras, porque uma complementa o trabalho feminino da outra. Há, portanto, um potencial político e social muito grande por parte dessas domésticas, babás entre outras que fazem a carreira dessas mulheres executivas funcionar.

IHU On-Line - As empresas multinacionais contribuíram para um melhoramento das condições de trabalho especialmente das mulheres?
Helena Hirata - Fiz muitas pesquisas sobre multinacionais francesas e japonesas, tanto nesses países como no Brasil, e posso dizer que realmente há uma melhora das condições de trabalho das mulheres de países ditos em vias de desenvolvimento quando são empregadas pelas firmas multinacionais. Em termos de salário, por exemplo, uma mulher que trabalha numa multinacional vai ganhar mais do que ganhava numa firma de capital nacional. Isso porque as multinacionais têm mais possibilidades de movimentações financeiras e podem dar melhores condições de trabalho. Nos anos 1980, quando estive numa multinacional francesa na área da metalúrgica, de sobremesa, eles davam maçã numa época que essa fruta não era comum no Brasil. Então, eu acho que desse ponto de vista dos benefícios sociais, as próprias operárias reconhecem como boas condições. Só que essas condições melhores não podem ser consideradas em si, mas no conjunto dos movimentos das empresas nas sociedades.

IHU On-Line - Há, hoje, a chamada Geração Y, conhecida também como a geração da Internet, considerados jovens bem informados, questionadores e com sede de subir na carreira. Como você vê a participação da mulher nesse grupo?
Helena Hirata - Acho que certamente existem mulheres dentro deste grupo, mas aparentemente todos os estudos sobre hackers e sobre os que têm uma atividade muito intensa em termos de uso da Internet consideram que esta área é majoritariamente ocupada por homens. Nesse sentido, está a questão da relação das mulheres com a técnica. Há estudos da diferença entre a relação dos homens e mulheres com a técnica e parece que há o que algumas autoras chamam de construção social da incompetência técnica das mulheres. Não se pede às mulheres para consertar um carro, por exemplo. Claro que, cada vez mais, há uma tendência à equalização das relações de homens e mulheres com a técnica. Mas hoje, por mais que as mulheres tentem entrar na área da informática, o setor é ainda majoritariamente ocupado por homens no plano profissional.

* Instituto Humanitas Unisinos

Fonte: Adital

ADITAL - Agência de Informação Frei Tito para a América Latina

sábado, 24 de abril de 2010

Nobel da Paz 2011 para as Mulheres Africanas

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Apelo: Prêmio Nobel da Paz 2011 para as Mulheres Africanas

Sábado, 24 de abril de 2010


A África caminha com os pés das mulheres. No desafio da sobrevivência, todos os dias centenas de milhares de mulheres africanas percorrem as estradas do continente à procura de uma paz duradoura e de uma vida digna. Num continente massacrado há séculos, marcado pela pobreza e sucessivas crises econômicas, o papel desenvolvido pelas mulheres é notório.

A campanha, nascida na Itália, já percorre o mundo para incentivar a entrega do Prêmio Nobel da Paz de 2011 para as mulheres africanas.

A proposta é da CIPSI, coordenação de 48 associações de solidariedade internacional, e da ChiAma África, surgida no Senegal, em Dakar, durante o seminário internacional por um Novo Pacto de Solidariedade entre Europa e África, que aconteceu de 28 a 30 de dezembro de 2008.

Chama a atenção a luta e o crescente papel que as mulheres africanas desenvolvem, tanto nas aldeias, quanto nas grandes cidades, em busca de melhor condição de vida. São elas que sustentam a economia familiar realizando qualquer atividade, principalmente na economia informal, que permite cada dia reproduzir o milagre da sobrevivência.

Existem na África milhares de cooperativas que reúnem mulheres envolvidas na agricultura, no comércio, na formação, no processamento de produtos agrícolas. Há décadas, elas são protagonistas também na área de microfinanças, e foi graças ao microcrédito que surgiram milhares de pequenas empresas, beneficiando o desenvolvimento econômico e social, nas áreas mais remotas até as mais desenvolvidas do continente.

Além de terem destaque cada vez mais crescente na área de geração de emprego e renda, as mulheres, com seu natural instinto materno e protetor, lutam pela defesa da saúde, principalmente, contra o HIV e a malária. São elas, as mulheres africanas, que promovem a educação sanitária nas aldeias. E, além de tudo, lutam para combater uma prática tão tradicional e cruel na região: a mutilação genital.
São milhares as organizações de mulheres comprometidas na política, nas problemáticas sociais, na construção da paz.

Na África varrida pelas guerras, as mulheres sofrem as penas dos pais, dos irmãos, dos maridos, dos filhos destinados ao massacre e sabem, ainda, acolher os pequenos que ficam órfãos.

“As mulheres africanas tecem a vida”, escreve a poetisa Elisa Kidané da Eritréia.
Sem o hoje das mulheres, não haveria nenhum amanhã para a África.

Em virtude de toda essa luta e para reconhecer o papel de todas elas é que surgiu a proposta de lançar uma Campanha Internacional para dar o Prêmio Nobel da Paz de 2011, a todas as mulheres africanas. Trata-se de uma proposta diferente, já que esta não é uma campanha para atribuir o Nobel a uma pessoa singular ou a uma associação, mas sim, um Prêmio Coletivo, a todas essas guerreiras.

A ideia é lançar um manifesto assinado por milhões de pessoas, por personalidades reconhecidas internacionalmente e criar comitês nacionais e internacionais na África e em outros continentes. Além de recolher assinaturas, a campanha deve estimular também encontros organizados com mulheres africanas, convenções e iniciativas de movimento.

Nós, latino-americanos e latino-americanas, temos muito sangue africano em nossas veias e em nossas culturas. Vamos gritar nossa solidariedade com a África assinando a petição.

A criatividade dos Movimentos Sociais e Populares, das ONGs, grupos religiosos, universidades, sindicatos, etc., pode inventar mil atividades para difundir essa iniciativa e colocar a mulher africana no centro da opinião pública do mundo.

Pode-se criar comitês, eventos com debates sobre a África, show de artistas locais, palestras nas universidades, nos bairros, nas praças, lançamentos da coleta de assinaturas, etc. Nossa criatividade vai fortalecer os caminhos da África.


Os membros da campanha são todos aqueles que assinarem a petição online. E para fazê-lo é simples. Para assinar a petição, acesse o link AQUI

Para mais informações, contate a Campanha pelo endereço: info@noppaw.org ou segretaria@noppaw.org ou no site www.noppaw.org

Links para BAIXAR OS BANNERS da Campanha - para seus sites, newsletters, Blogs:

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Fonte: Adital


Recebido de Jorge Luís Rodrigues dos Santos, a quem agradecemos.
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O legado do presidente do STF, Gilmar Mendes, aos povos indígenas

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O legado do presidente do STF, Gilmar Mendes, aos povos indígenas

Por Erika Yamada

Nesta sexta-feira, dia 23 de abril de 2010, o ministro Gilmar Mendes deixa a presidência do STF e um pesado legado aos povos indígenas do Brasil. Como presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) nos últimos dois anos, o ministro Mendes proferiu monocraticamente pelo menos oito decisões liminares que ameaçam a segurança jurídica de Terras Indígenas (TIs) no país. Só durante as últimas férias forenses entre 24 de dezembro e 29 de janeiro, na ausência de seus colegas, o presidente do STF concedeu quatro liminares, inclusive em mandados de segurança (MS 28574-DF, MS 28567-DF, MS 28541-DF e AC 2556-MS) para suspender os efeitos de decretos presidenciais de homologação e de portaria do Ministério da Justiça que declara no Mato Grosso do Sul e em Roraima.

O ministro Gilmar Mendes sai da presidência do STF, mas as liminares ficam. E com elas também fica a insegurança jurídica sobre TIs declaradas e homologadas.

Desde o caso Krenak (1996), apenas o caso Raposa-Serra do Sol (2008) foi apreciado no mérito da discussão sobre direitos indígenas para além de questões processuais pelo STF. Tanto que, em março de 2010, o tribunal rejeitou o pedido de súmula vinculante PSV 49 de autoria da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). A entidade de classe solicitava que não fosse considerado como terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as terras de aldeamento extintos antes de 5 de outubro de 1988, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.

A Comissão de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu em sua manifestação pelo arquivamento que não há suficientes decisões reiteradas do tribunal sobre o tema da demarcação para justificar a edição de uma súmula vinculante.

Apesar de decisões de mérito sobre a demarcação de Terras Indígenas (TIs) serem raras no STF, decisões liminares foram concedidas pelo ministro Gilmar Mendes mediante inúmeras irregularidades e contrasensos. Por exemplo, as últimas quatro liminares de Mendes enquanto presidente foram concedidas sem ouvir previamente a Funai e a União, com base em argumentos jurídicos fracos e numa clara tentativa de impor uma interpretação não consolidada sobre o alcance da decisão do STF no caso Raposa-Serra do Sol.

Na prática, ficam os povos indígenas submetidos a uma situação de maior vulnerabilidade e insegurança jurídica quanto à proteção de suas terras demarcadas. Ganham os autores com as concessões de tais liminares, simplesmente por seu caráter protelatório. Dados os argumentos formais e materiais, é de se esperar que os pedidos antecipados não sejam confirmados ao final da ação. Só não se sabe quanto tempo levará o STF para analisar essas ações pendentes.

Improbabilidade do resultado

Decisões de mérito do STF em casos de demarcação de TIs são contrárias aos argumentos apresentados pelo ministro Gilmar Mendes como presidente do tribunal, para fundamentar as liminares concedidas. Isso se reflete especialmente no caso de liminares em mandados de segurança que contestam a demarcação de TIs porque a jurisprudência do STF entende que o mandado de segurança não é via adequada para discutir se uma área é ou não TI. Ou seja, o STF terminará por julgar improcedente essas ações que são contempladas por liminares, porque entende que a comprovação da ocupação tradicional indígena de terras exige matéria de fato a ser discutida e provada em ação própria. Inexistente seria portanto o fumus boni iuris do pedido liminar nos mandados de segurança desse tipo.

De acordo com o STF, o registro de título aquisitivo de propriedade não comprova direito líquido e certo individual sobre áreas reconhecidas como . É que a simples existência de um título não afasta a posse indígena. Assim, em ação própria declaratória ou ordinária deve ser feita perícia antropológica para instruir o magistrado acerca da ocupação indígena tal como define a Constituição Federal em seu artigo 231. Consequentemente, não seria possível que, por mandado de segurança, aquele que simplesmente apresenta títulos alcance a anulação dos atos administrativos que reconhecem . (STF - MS 20.723/DF, Rel. Min. Djalci Falcão).

O fundamento das medidas liminares do ministro Gilmar Mendes

Ainda assim, enquanto presidente do STF, Gilmar Mendes apresenta quatro argumentos padronizados para justificar a concessão das liminares nos diferentes casos:

a) plausibilidade da violação do direito ao devido processo, à ampla defesa e ao contraditório dos ocupantes não-indígenas;

b) existência de registros de imóveis anteriores à data de 5 de outubro de 1988 e a chamada jurisprudência do STF no caso Raposa-Serra do Sol e, consequentemente;

c) justificativa do periculum in mora com base no fato alegado de que, a qualquer momento, a União poderia proceder ao registro no cartório imobiliário das homologadas, culminando na “transferência definitiva da propriedade” para a União; e

d) justificativa do periculum in mora com base no alegado perigo de “novas invasões” das terras por parte dos indígenas.

As decisões liminares produzidas em série e a toque de caixa pelo presidente ministro Gilmar Mendes não apresentam fundamentação jurídica adequada, conforme pode-se constatar a seguir. Mesmo assim, produzem efeitos nos casos concretos porque tendem a perdurar no tempo em prejuízo dos povos indígenas. Mas, acima de tudo, essas liminares retratam a tentativa do ministro Gilmar Mendes de consolidar um entendimento quanto ao conteúdo e ao alcance de algumas das condicionantes, resultado do julgamento do STF no caso Raposa-Serra do Sol.


A jurisprudência do STF sobre o Direito Originário dos Povos Indígenas

O que se tem como jurisprudência do STF - em análise de mérito dos poucos casos que enfrentou para além das questões processuais e no julgamento do caso Raposa-Serra do Sol é o reconhecimento do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais. A Suprema Corte do país já reafirmou o caráter originário do direito dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais e entende que tal direito coletivo se sobrepõe, inclusive, à expedição de títulos de propriedade de particulares. (STF – Pet. N.1.208-9/MS, Min. Rel. Celso de Mello).

Não há decisão de mérito do STF que desconheça o direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionais. Mesmo no citado caso da Raposa-Serra do Sol, não está claro que a interpretação do chamado marco temporal negue o caráter de direito originário esse que os povos exercem sobre suas terras.


O caso da Raposa-Serra do Sol


Em resumo, o julgamento do caso da TI Raposa-Serra do Sol reconhece o direito dos povos indígenas sobre seus territórios tradicionais como manda o artigo 231 da Constituição Federal de 1988; afasta a possibilidade da demarcação de TIs em ilhas; declara a nulidade de títulos sobre áreas insertas dentro dos limites da Terra Indígena em questão; e ressalta a especial proteção constitucional das TIs nos casos em que os índios não ocupavam suas áreas tradicionais à época da promulgação da Constituição de 1988 por causa de esbulho provocado por terceiros.

O acórdão do caso Raposa-Serra do Sol não é súmula vinculante e nem define que as TIs serão reconhecidas e demarcadas apenas se comprovada a ocupação física dos indígenas na data da promulgação da Constituição. O escopo da Constituição Federal, como bem salientado no Voto do Relator no caso Raposa-Serra do Sol, é buscar a justiça histórica com relação aos atos que foram perpetrados em anos anteriores. Reconhece-se em Raposa-Serra do Sol que a demarcação de TIs se insere no contexto de uma “era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas” para que os índios possam “desfrutar de um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, lingüística e cultural."

Lembrando que, no caso Raposa-Serra do Sol, os diversos ministros do STF apresentaram posicionamentos muitas vezes conflitantes, mas que se condensaram num arranjo jurídico para atender ao contexto político em que se inseria o caso. Assim, as 19 condicionantes ali postas não são entendimentos consolidados e não se aplicam genericamente a quaisquer casos que versem sobre demarcações de TIs. Nesse sentido, em abril de 2009, o ministro do STF Carlos Ayres Britto julgou improcedente a Reclamação 8070, em que os fazendeiros alegavam que a revisão dos limites da TI Wawi (MT) pela Funai contrariavam a decisão proferida pelo STF no caso Raposa-Serra do Sol. Ao decidir pela improcedência de tal Reclamação, o ministro Carlos Ayres Britto pontua que “há dúvida quanto ao próprio cabimento desta reclamação, uma vez que a ação popular não é meio processual de controle abstrato de normas, nem se iguala a uma súmula vinculante.”

Sobre o marco temporal

Portanto, o acórdão do caso Raposa-Serra do Sol se refere ao chamado marco temporal da ocupação das Terras Indígenas – a data de 05 de outubro de 1988 – para depois reafirmar o “reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.” A referência ao marco temporal pelo STF não afasta o caráter originário dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras tradicionais. Não descarta a necessidade e o peso da identificação e do estudo antropológico de áreas indígenas em outros casos por causa da mera apresentação de documentos de titularidade mais antigos que a Constituição Federal.

O que se tem no acórdão da Raposa-Serra do Sol é o esclarecimento de como era a ocupação indígena, à época da promulgação da Constituição de 1988, para a confirmação do reconhecimento – via demarcação, precedida de estudos antropológicos - da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol. Ou seja, não é a presença ou ausência do povos indígenas sobre suas terras na data de 05 de outubro de 1988 que determinará se a terra é indígena ou não e, sim, a sua importância para a reprodução física e cultural e a manutenção dos laços tradicionais com aquelas determinadas áreas. Em verdade, o acórdão do caso Raposa-Serra do Sol ressalta que se em 05 de outubro de 1988 a área em discussão não era ocupada por indígenas em razão de esbulho por parte de terceiros, aos povos indígenas fica assegurada a proteção constitucional sobre suas terras.

O devido processo e a ampla defesa

A alegada falta de oportunidade para os autores se manifestarem previamente aos atos de demarcação e homologação também foi utilizada pelo ministro Gilmar Mendes como fundamento para a concessão de suas últimas liminares enquanto Presidente do STF. No entanto, de acordo com o princípio do contraditório instituído pelo Decreto nº 1.775, as entidades federadas, os municípios sobrepostos à área indígena e/ou os particulares que se sintam afetados pelo processo demarcatório, podem manifestar-se a respeito do mesmo, a fim de pedir indenizações ou demonstrar vícios no relatório que identifica a posse ancestral. Estas manifestações podem ser feitas, em qualquer tempo, desde o inicio do procedimento demarcatório (baixa de portaria) até 90 dias após a publicação do relatório pela Funai.

Portanto, o que deveria ser verificado pelo STF - antes da concessão das liminares em questão - é se houve ou não oportunidade para que os autores se manifestassem, ainda antes da Portaria Ministerial que declara as áreas como. A existência de uma contestação administrativa dos autores – como houve por exemplo no caso da TI Cachoeirinha (MS) com liminar concedida em janeiro de 2010 - ou mesmo de terceiros em situação semelhante em razão da demarcação da mesma terra indígena afastaria de cara a alegada violação aos princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa. O STF também já decidiu pela necessidade de ouvir a Funai e a União antes da concessão de liminares que versem sobre direitos indígenas, de acordo com o estabelecido no Artigo 63 da Lei 6001/73.

Outro argumento mencionado nas concessões das liminares é o de que as TIs em questão estariam sub judice e por isso não poderiam ser administrativamente demarcadas ou homologadas. Aqui estaríamos diante de um argumento de violação do devido processo legal no que diz respeito ao princípio da inafastabilidade do controle judicial em relação aos particulares que ocupam TIs em processo de demarcação. No entanto, a pendência judicial no âmbito da Justiça Federal, chamada de demarcação sub judice tem sido debatida e entendida pelos ministros do STF como incapaz de paralisar o procedimento administrativo de demarcação de TIs. (STF – Pet. N.1.208-9/MS, Min. Rel. Celso de Mello).

Triste Semelhança com o caso TI Ñande ru marangatu

A única decisão semelhante do STF que suspende um decreto presidencial de homologação de TI é a liminar concedida no caso da TI Ñande ru marangatu, no Mato Grosso do Sul. Contudo, por se tratar de decisão liminar não constitui jurisprudência, e o que se conclui do desenrolar dessa ação é a possibilidade de ameaça jurídica da demarcação de TIs no país, que não se deveria querer na mais alta corte.

Por decisão também liminar do então presidente do STF, Nelson Jobim, em 2005, o STF suspendeu o decreto presidencial de homologação da terra indígena. O principal argumento usado pelo Ministro Jobim contra a demarcação da TI Ñande ru marangatu também era um precedente frágil: a liminar do STF, no caso da TI Jacaré de São Domingos, na Paraíba. (MS 21.869-PB, Relator Min. Joaquim Barbosa). Em 2007, a liminar concedida no caso Jacaré de São Domingos foi revogada, apesar da liminar de 2005 continuar em vigor até hoje. Em Ñande ru marangatu, a decisão liminar resultou na expulsão de cerca de 700 pessoas indígenas, a maioria mulheres e crianças, que ficaram por mais de um ano acampadas na beira da estrada. Uma liderança foi morta. O caso ainda aguarda decisão de mérito. STF – Med. Caut. em MS 25.463-7

O curioso é que no citado precedente de Jacaré de São Domingos, na análise do mérito em 2007, a maioria dos ministros do STF, concluiu pela impossibilidade de ação judicial em curso paralisar o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. A exceção seria apenas no caso de subsistir decisão judicial ou medida liminar com finalidade específica de suspender o procedimento administrativo. Afirmaram que há presunção de legitimidade e auto-executoriedade sobre os atos administrativos. Isso significa que, a União independe de autorização judicial para cumprir com sua missão constitucional, como no caso da demarcação das TIs. Portanto, concluiu o STF que o prosseguimento da demarcação administrativa de TIs não impede que questões de direito sejam discutidas pelas vias judiciais adequadas e assim não viola o direito ao contraditório e à ampla defesa.

Nesse sentido, o próprio ministro Gilmar Mendes (que hoje apresenta fundamento de concessão de medida liminar relacionado ao fato das demarcações estarem sub judice) pontuou com clareza sobre a compatibilidade entre a demarcação e homologação das TIs e eventuais pendências judiciais, comparando a jurisprudência da casa nos casos de procedimentos administrativos de desapropriação para reforma agrária.

Conclusão

Ao deixar a presidência do STF, o ministro Gilmar Mendes também deixa pelo menos quatro liminares que são incongruentes com as decisões de mérito já proferidas pelo STF sobre a demarcação de TIs no país. Se não reformadas por seus respectivos ministros relatores ou pelo pleno em julgamento, essas medidas se caracterizarão como protelatórias e violadoras de direitos indígenas consagrados na CF e na jurisprudência desta Corte.

A morosidade do Judiciário para decisões de mérito em casos de TIs, e a concessão de liminares expedidas monocraticamente pelo STF aumentam a insegurança jurídica acerca da ocupação e proteção territorial do país. As dúvidas que pairam sobre a titularidade das TIs, não beneficiam nem aos índios nem àqueles que, de boa-fé, querem fazer uso do que lhe é de direito. Além disso, tal posicionamento da presidência do STF ignora a justificativa da corte para tomar para si os problemas que não são resolvidos nos âmbitos do Poder Executivo e do Poder Legislativo. Erra duas vezes: ao continuar adiando a resolução de conflitos indígenas; e ao falhar com a sua própria missão de proferir a justiça de forma definitiva.
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As terras e os Povos Indígenas
afetados pelas últimas decisões do
ministro Gilmar Mendes
como presidente do STF


No caso da TI Arroio-Korá (MS), com 7.175ha, a suspensão dos efeitos da homologação nas áreas de cinco fazendas particulares, corresponde a cerca de 90% da TI demarcada. Fica portanto comprometida a proteção territorial dos cerca de 500 Guarani Kaiowá e Nhandeva, que hoje ocupam apenas uma parte muito pequena da área. Muitos Guarani foram retirados forçosamente de parte das suas terras durante a década de 1960, época que se acentuou muito a colonização da região, incentivada pelo governo federal e viabilizada pelo governo estadual. No entanto, os Guarani continuaram na região, fazendo trabalhos temporários nas fazendas, vivendo de maneira precária, para não abandonar seu território tradicional. A homologação da demarcação e a desintrusão desta parte do seu território é fundamental para este povo, de maior população no Brasil e o que detém uma parcela ínfima das terras que necessitam para sobreviver.

A TI Cachoeirinha (MS), cuja Portaria do MJ. que declara a terra de posse permanente indígena Terena foi suspensa no início do ano, tem uma população de 3.500 pessoas, morando em 5 aldeias, em uma área de 36 mil ha. A decisão liminar afeta os Terena que participaram ativamente na guerra contra o Paraguay (1864), mas tiveram o seu território original paulatinamente invadido por indivíduos que se estabeleceram na região após a guerra. A liminar que suspende os efeitos da Portaria do MJ também obsta a homologação presidencial do reconhimento da TI Cachoeirinha que representa uma parte do que restou aos Terena do seu território original.

Na TI Anaro (RR), habitada por índios Wapichana, a suspensão dos efeitos da homologação na área de uma fazenda, causa um comprometimento físico proporcionalmente menor. No entanto, o que poderia surpreender a alguns é que a medida beneficia Oscar Maggi, alegado proprietário da Fazenda Topografia, que responde a 9 processos na Justiça Federal de Roraima, entre eles uma execução fiscal, onde ele deu a Fazenda Tipografia como garantia. A fazenda Tipografia foi adquirida por Maggi na época em que ocorreu o desvio do dinheiro público (2002 a 2004). A suspensão da homologação da demarcação concedida por Gilmar Mendes impede o registro da terra indígena no cartório e mantém Oscar Maggi na ocupação da Fazenda em detrimento dos Wapichana.

23/4/2010

Fonte ISA – Instituto Socioambiental

Fotos Agência Brasil


sexta-feira, 23 de abril de 2010

Gonçalves Dias: aliado às avessas?

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Voz destoante

Por Fábio de Castro
23/4/2010

Agência FAPESP – No primeiro semestre de 1850, a revista Guanabara publicou três capítulos de Meditação, uma obra inacabada de Gonçalves Dias (1823-1864). O texto, escrito em prosa poética, é hoje praticamente desconhecido, apesar da notável importância histórica: pela primeira vez um escritor do romantismo criticava de forma implacável a sociedade, o Estado e, em especial, o sistema escravista.

Um estudo feito por Wilton José Marques, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), abriu a discussão sobre esse texto pioneiro do poeta maranhense.

Os resultados da pesquisa – um pós-doutorado realizado com bolsa da FAPESP entre 2002 e 2003 no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – formaram a base para o livro Gonçalves Dias: o poeta na contramão, que acaba de ser publicado com apoio da Fundação na modalidade Auxílio à Pesquisa – Publicações.

De acordo com Marques, o que mais chama a atenção em Meditação, é o fato de escancarar as mazelas sociais do país de forma inédita entre os escritores canônicos românticos naquela época. O eixo central do livro nasceu a partir do texto As ideias fora do lugar, de Roberto Schwartz. Uma das teses do crítico, segundo Marques, sustenta que em meados do século 19 os escritores viviam quase exclusivamente dos favores do governo.

Os intelectuais brasileiros viviam uma relação de dependência com o Estado. Essa política do favor explica por que a literatura nacional só passou a abordar criticamente o tema da escravidão quando o abolicionismo já dominava o debate nacional”, disse Marques à Agência FAPESP.

Segundo ele, quando Gonçalves Dias publicou Meditação, a literatura romântica praticamente não tinha referências explícitas à escravidão e a violência do sistema não transparecia em nenhuma obra. Os primeiros textos abolicionistas de Castro Alves (1847-1871), por exemplo, só entraram em cena a partir de 1863, quando a discussão já tomava as ruas.

O texto de Gonçalves Dias é uma crítica ferrenha à escravidão e é incrível que seja tão pouco conhecido. Praticamente não há referências à sua existência. O meu livro procura preencher essa lacuna, discutindo a posição do intelectual em relação ao Estado e a forma como ele se insere na máquina estatal por meio de uma relação de favores”, disse Marques.

Apesar da virulência do texto, Gonçalves Dias não estava isento da “política do favor”. Em 1846, quando começou sua carreira literária e mudou-se para o Rio de Janeiro, o poeta tornou-se funcionário público, trabalhando como professor no Colégio Pedro 2º.

Com a economia baseada na escravidão, o trabalho livre praticamente não existia. O intelectual, assim, não tinha alternativa além de trabalhar e ser remunerado pelo Estado. Os escritores eram obrigados a se resignar a uma espécie de “cumplicidade cabisbaixa”.

Em um país que tinha 70% da população analfabeta e os livros eram exclusividade de uma pequena elite, era natural que os escritores atuassem como funcionários públicos. Mas, apesar de se sujeitar a isso, Gonçalves Dias fez uma literatura que questionava o estado das coisas. A primeira expressão dessa contestação está em Meditação”, disse Marques.

Dedo na ferida

Gonçalves Dias estava consciente da própria situação de cooptado e acreditava que a dependência em relação ao Estado era danosa para a produção artística. Em uma carta da década de 1860, o poeta ressaltou que, “enquanto o literato precisar de empregos públicos, não poderá haver literatura digna de tal nome”.

Em sua análise, Marques discute como Gonçalves Dias estava na contramão das expectativas românticas, de valorização da natureza e do índio como “brasileiro autêntico”.

Além de criticar a escravidão e fugir da corrente comum dos escritores canônicos do romantismo, ele, naquele texto, também criticou de forma virulenta a elite brasileira. Atacou a classe política – que acusou de se aproveitar do bem público para interesses particulares – e criticou a exclusão social”, apontou.

O poeta desferiu golpes não só contra as esferas do poder, mas principalmente contra as esferas do saber. “Em determinado momento ele defendeu que é preciso dar educação ao povo. A estrutura política do Império era excludente em vários aspectos, mas especialmente em relação à educação. Gonçalves Dias colocou o dedo nessa ferida sem rodeios”, afirmou.

Em seu livro, Marques levanta a hipótese de que uma parte particularmente contundente do terceiro capítulo de Meditação pode ter sido censurada. O trecho não foi publicado na versão de 1850 da revista Guanabara, mas reapareceu em uma publicação de 1868. <> “Esse trecho retrata uma conversa noturna dentro de um palácio – que remete ao Palácio São Cristóvão – na qual políticos discutem o que fazer com o Brasil. Um deles questiona o que o Imperador pensará de tal debate. Um dos políticos levanta o véu da cama e diz: ‘o Imperador dorme’. O trecho remete ao período da regência, quando o Imperador era jovem demais para exercer o poder”, disse.

Em sua crítica à escravidão, Gonçalves Dias lançou mão principalmente de argumentos econômicos, segundo o professor da UFSCar. A entrada do Brasil na modernidade, para o poeta, só se daria por meio da implantação do trabalho assalariado.

“Gonçalves Dias não fez uma leitura humanista, como a de Castro Alves. Ele acreditava na superioridade racial dos brancos. Mas, em sua visão, a escravidão era um atraso por impedir a adoção de um modelo capitalista”, disse.

Extraído de Agência FAPESP


quarta-feira, 21 de abril de 2010

Ativista Dorothy Height morre aos 98

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Ativista norte-americana Dorothy Height morre aos 98 (1912-2010)

20/04/2010 - 10:25 - Reuters

WASHINGTON (Reuters) - A ativista norte-americana de direitos civis Dorothy Height, presidente do Conselho Nacional das Mulheres Negras, morreu na terça-feira em Washington, aos 98 anos. Assistente social de formação, Height começou a militar pelos direitos civis e a igualdade de gênero na década de 1930, atuando para evitar linchamentos, proibir a segregação nas Forças Armadas dos EUA, reformar o processo penal e promover o livre acesso a acomodações públicas no país.

Ela morreu de causas naturais no Hospital Universitário Howard, segundo uma porta-voz da clínica.

No obituário dela publicado em sua edição digital, o jornal The Washington Post disse que "a sra. Height foi possivelmente a mulher mais influente nos altos escalões da liderança dos direitos civis, mas nunca atraiu a atenção da grande imprensa, que conferiu celebridade e reconhecimento instantâneo a alguns outros líderes dos direitos civis da sua época".

Em 1994, o então presidente Bill Clinton lhe concedeu a Medalha Presidencial da Liberdade, maior honraria civil dos EUA. Em 2004, ela recebeu a Medalha de Ouro do Congresso.

Fonte em português: Último Segundo

Fonte em inglês: The Washington Post

Galeria de fotos Dorothy Heigh, no The Washington Post

Máximas de Dorothy Heigh (em inglês)


segunda-feira, 19 de abril de 2010

Quilombolas de Pedro Cubas e a procissão da quaresma

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Quilombolas de Pedro Cubas mantém viva a procissão noturna que encerra a quaresma

[12/04/2010 12:24]


A Recomendação das Almas, procissão noturna que percorre mais de 20 km, é parte do patrimônio cultural quilombola, cuja tradição é mantida pela comunidade de Pedro Cubas, em Eldorado, no Vale do Ribeira. A equipe do ISA registrou a manifestação cultural.

Todos os anos, durante a semana santa, na virada da noite da sexta-feira da paixão para o sábado de aleluia, o cortejo fúnebre conhecido como Recomendação das Almas, sai do quilombo de Pedro Cubas, única comunidade quilombola da região que ainda pratica o ritual, e percorre um trecho de mais de 20 quilômetros entoando cânticos e orações. Foi assim na madrugada do sábado de aleluia, no último dia 4 de abril.

"Bendito louvado seja
Da morte paixão de Cristo
Acordai irmão das almas
Acordai se estão dormindo"

(Oração cantada da Recomendação das Almas em Pedro Cubas)

A equipe do ISA acompanhou e registrou a celebração. O material etnográfico e áudio-visual resultante integra o Projeto de Inventário de Referências Culturais Quilombolas, em elaboração conjunta com agentes culturais quilombolas. O projeto é patrocinado pela Petrobrás, e realizado em parceria com Aecid (Cooperação Espanhola), AIN (Ajuda da Igreja da Noruega), Secretaria Estadual de Cultura, Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), Núcleo Oikos e Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria das Comunidades Negras).

O projeto busca o levantamento dos bens culturais imateriais e materiais de 16 comunidades quilombolas no Vale do Ribeira, aplicando a metodologia desenvolvida pelo Iphan, que reconhece cinco categorias do patrimônio cultural: “celebrações”; “ofícios e modos de fazer”; “formas de expressão”; “lugares”; e “edificações”. O inventário consiste na primeira etapa de um plano de salvaguarda de bens culturais, que pode culminar no registro do bem cultural nos cadernos do Iphan. O trabalho junto aos agentes culturais quilombolas deverá resultar na seleção de macro-categorias da cultura local, que contemplem as expressões culturais das comunidades.

Salvaguardar tradições culturais implica gerar internamente nas comunidades a consciência sobre a importância do objeto da salvaguarda. Com a participação efetiva dos agentes culturais e a mobilização das comunidades em qualificar suas formas culturais, o projeto alcança aquilo que constitui um de seus principais objetivos: a valorização do patrimônio cultural quilombola pelos próprios quilombolas.

A Recomendação das Almas de Pedro Cubas

Procissões fúnebres, realizadas a noite, com o objetivo de encaminhar as almas dos mortos à luz divina e às portas do céu já foram registradas em Portugal e em diversos estados brasileiros, de norte a sul, sob diferentes denominações: recomendação (ou recomenda) das almas; encomendação das almas; alimentação das almas; folia das almas; procissão das almas; sete passos; procissão de penitência.

Não se trata, portanto, de uma marca cultural particularmente quilombola. A referência desta expressão religiosa é católica, o que se percebe nas evocações recorrentes a Deus, Nossa Senhora, São Miguel, Santo Antônio de Lisboa. Em Pedro Cubas, elementos externos à tradição católica aparecem associados ao ritual, como a infusão em aguardente de guiné, utilizada para benzimento e cura, e personagens da literatura oral brasileira que são apropriados regionalmente de modo bastante particular. A Recomendação das Almas e suas variantes expressam um arranjo criativo do catolicismo à moda brasileira, encontrado em comunidades rurais, resultante das relações históricas entre diferentes tradições religiosas colocadas em contato pelo contexto colonial.

A figura do “irmão das almas”, evocado nos cânticos da comunidade de Pedro Cubas, é referência em procissões fúnebres também no nordeste, como revela a obra de João Cabral de Melo Neto Morte e Vida Severina. Aos irmãos das almas cabe o trabalho de lavar, vestir, velar e enterrar o defunto. Embora calcado na tradição católica, a Recomendação das Almas parece suspender temporariamente certas oposições cristãs: vida e morte, corpo e alma, luz e sombra. E traz para a dimensão do mundo visível, entes normalmente invisíveis. Esta suspensão permite a comunicação entre vivos e mortos e possibilita a eficácia do ritual, que é fazer com que os vivos tragam à luz as almas das sombras, para que sejam aceitas no céu. Ao mesmo tempo em que se ora pelas almas dos mortos, os participantes do ritual buscam a redenção de suas próprias almas.

A caminhada é realizada ao longo da estrada que liga a comunidade ao Rio Ribeira de Iguape. Os participantes são seguidos pelas almas dos mortos, atraídos pelos cânticos e pelo som da matraca, instrumento feito de pequenos tacos de madeira. Vivos e mortos dividem o mesmo espaço, e caminham no escuro em busca da mesma coisa: a redenção de suas almas. “A luz que buscamos, buscamos em oração”, explica o capelão Antonio Jorge. Para o curandeiro e benzedor da comunidade, Adão, “andamos no escuro para não chamar atenção de certos espíritos”. É que neste momento, as almas tornam-se visíveis, mas deve-se evitar olhar para elas.


Almas seguem os fiéis

Os locais de parada para oração são encruzilhadas, taperas, casas de antigos moradores, locais significativos da estrada. Quando param, todos se posicionam na margem da estrada, deixando a passagem livre para as almas. O capelão Antonio Jorge toca então, vagarosamente, sua matraca e entoa cânticos e orações que são seguidos pelo coro agudo das cantadeiras.

A Recomendação das Almas é realizada somente na semana santa, período em que, não por acaso, morte e vida (ressurreição) de Cristo são simbolicamente revividas. A procissão pode ocorrer em uma, três, cinco ou sete noites, conforme decisão dos participantes. Porém, é na passagem da sexta-feira da paixão para o sábado da aleluia que o cortejo percorre o trecho completo, partindo da comunidade de Pedro Cubas até o cemitério do Batatal, próximo ao Rio Ribeira de Iguape. Os trajes devem ser nas cores branca e preta. Branco para manutenção da luz e apaziguamento das almas; preto simbolizando luto.

A garrafada preparada por Cacilda, anfitriã e cantadeira da Recomendação das Almas, é uma infusão em aguardente de raiz de guiné, arruda, alho e eventualmente chifre de boi moído. Utilizada para benzimento dos participantes, antes e depois do cortejo, a garrafada é também consumida ritualmente como bebida, em virtude das propriedades medicinais de seus ingredientes. As orações intercedem pelas almas do purgatório, da encruzilhada e todas aquelas que resultam de mortes acidentais: alma dos atirados, alma dos afogados, e alma dos ofendidos (morte causada por picada e cobra). Ao retornarem, após mais de seis horas de procissão, os participantes são esperados na casa de Adão e Cacilda com café, coruja (massa de mandioca levemente adocicada) e outros alimentos da roça. Alimentam-se e vão para suas casas descansar, depois de terem cumprido a missão.

ISA, Anna Maria Andrade