Cala boca, besta
por Wander Lourenço*
Jornal do Brasil –
25/10/2011 - 22h01
Até quando iremos
tolerar a desconfiança contra cidadãos negros ou mestiços por parte de uma
visão elitista e conservadora, provinda dos longínquos tempos da escravatura,
ao compactuarmos com uma conduta execrável e abjeta, que interpreta pela cor da
pele o tratamento a ser direcionado pelo algoz ao réu?
Ao assistir, estupefato, ao episódio vivenciado pela cantora
do conjunto Orquestra Imperial, Thalma de Freitas, no noticiário televisivo,
lembrei-me de que, habitualmente, parte da população brasileira se refere aos
policiais militares como capitães do mato, por estes se dedicarem à captura de
marginais homiziados em quilombos/favelas.Em alusão aos negros e mestiços que
serviam aos senhores de engenho, em busca de consideração e recompensas
pecuniárias, os caçadores de escravos aprisionavam os negros fujões e os
arrastavam até a senzala, a fim de que se preservasse a ordem e a
propriedade.Ao descer as ladeiras do Morro do Vidigal, a talentosa artista
negra fora abordada por sujeitos fardados possivelmente em sua maioria
pertencentes aos mesmos traços e padrões étnicos, que desconfiaram não só de
sua procedência; mas, sobretudo, de sua origem racial porque, de acordo com
depoimento da vítima, havia no local uma jovem
branca que os homens da lei sequer ousaram suspeitar ou pôr em revista.
No romance histórico intitulado O sonho do Celta, Mario
Vargas Llosa retrata uma identificação nominal destinada aos indígenas peruanos
"castelhanizados", responsáveis pela vigília e aplicação dos castigos
ou mutilações nos selvagens recrutados em "correrias" – leia-se,
caçadas que sequestravam homens, mulheres e crianças –, para labutação nos
seringais amazônicos no início do século 20 – racionais. Sim, alcunhavam desta
propícia maneira os silvícolas ameríndios evangelizados e, por conseguinte,
aptos a colaborar com os métodos de exploração impostos pelos europeus
desbravadores da Floresta Amazônica. Em retorno ao ofício dos capitães do mato
ou indígenas racionais, poder-se-ia concluir que os soldados que detiveram a
promissora Thelma de Freitas o fizeram por preconceito étnico ou por uma
espécie de revanchismo paradoxalmente contra a própria raça negra? Uma vez que
disfarçados de uma autoridade onipresente, os policiais militares se sentiriam
no pleno dever de descontar as atrocidades e injustiças antepassadas, que
povoaram as suas existências abalroadas de recordações de uma pobre infância de
subúrbio ou favela?
Ao que parece o ódio da abominação oriunda de um remoto
período de humilhação ainda não foi cicatrizado; entretanto, quando se
utilizaram da força bélica de um fuzil ou metralhadora para obrigar uma pessoa
pública ao constrangimento de acompanhá-los, dentro de uma suposta legalidade,
até a delegacia mais próxima para revista feminina, não imaginavam que a
coragem desta mulher negra iria impulsioná-la a denunciar, diante das câmeras
em rede nacional, a recorrente prática de desrespeito a que estes incautos
guardiões da moral e dos bons costumes estão afeitos a impunemente lidar com os
habitantes da cidade do Rio de Janeiro.Quantos de nós já presenciamos, em
blitz, as tais abordagens a negros e mulatos, protagonizadas por membros da
guarda estadual da mesma origem racial dos suspeitos incriminados por uma
desprezível atitude de autoritarismo diante de um suposto delito de nascença –
a negritude ou mestiçagem? Quantos cidadãos anônimos sofrem, cotidianamente, em
aterrorizante lei do silêncio, com o abuso de autoridade destes impetuosos cães
de guarda mal treinados, que se travestem de capitães do mato ou racionais
para, sem educação nem princípios, insultarem o direito de cidadania dos
milhares de centenas de trabalhadores fluminenses – frutos da tão decantada
miscigenação pátria?
A repulsa da esdrúxula situação impele ao atroz descaso com
o ser humano por intermédio do assassínio de sua integridade física e moral,
mutilada por irresponsáveis ações
já corriqueiras de pessoas detentoras de um direito de ir e vir castrado por um
ímpeto de aberrante desobediência constitucional.Até quando iremos tolerar a
desconfiança contra cidadãos negros ou mestiços por parte de uma visão elitista
e conservadora, provinda dos longínquos tempos da escravatura, ao compactuarmos
com uma conduta execrável e abjeta, que interpreta pela cor da pele o
tratamento a ser direcionado pelo algoz ao réu? Que não cessem os
questionamentos de ordem intelectual mediante mordaz hipocrisia, que
marginaliza pelo olhar do inquisidor a serviço da opressão, que aprisiona pelo
ato de vil julgamento étnico e que condena pela antilei professada pela
discriminação racial.
Para ilustrar o entrevero entre a atriz Thalma de Freitas e
os policias militares do Vidigal, quiçá em descabido e secular revanchismo,
reporto-me ao livro Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881. Em
criança, Brás Cubas fazia o escravo Prudêncio de negro de montaria, com arreios
e chicote; e, quando o preto reclamava dos maus-tratos impostos, o sinhozinho
branco o repelia com um providencial e supremo: “Cala boca, besta!...”. Anos
depois, o memorialista deparou-se com uma curiosa cena em que um homem de cor
alforriado humilhava em praça pública, com xingamentos e ameaças, um seu negro
cativo, indulgente e beberrão. Entrementes, qual não foi a sua surpresa quando
reconheceu o seu antigo animal de montaria de outrora na figura daquele que o
parafraseava, pois que o velho e bom Prudêncio, ao retorquir as reclamações do
pobre diabo que, aos bofetões e impropérios, era castigado, soberbo e majestoso,
obtemperava: “Cala boca, besta!...”.
* Wander Lourenço de Oliveira, doutor em letras, é professor
da Universidade Estácio e autor dos livros ‘Com licença, senhoritas (A
prostituição no romance brasileiro do século 19)’ e de ‘O enigma Diadorim’.
O relato leva-me a considsrar o ensinamento do sociólogo Padre Fernando Bastos de Ávila, acerca dos comportamentos alógicos do homem,
ResponderExcluirquando imita outros,de forma insensata e ir racional, eis que o normal seria e é tratar
os outros como gostaríamos de ser tratados,
de forma amorosa e justa.
Triste Brazil com /z...simples assim.
ResponderExcluirOrganização e a luta contra o Racismo e suas multifacetadas formas de Discriminção, não podem ser entendidas como estratégias do passado,contra os algozes da população afrodescendente.Infelizmente, ainda é uma prática do Brasil do terceiro milênio.
ResponderExcluirA minha solidariedade à Talma deFreitas.
Adelia Azevedo
Pedagoga/Arteterapeuta
Concordo com o comentário do Emmanoel acima, "triste Brazil"...
ResponderExcluirA Constituição de 1988, consagra nas leis a igualdade entre os sexos, raças, etnias... etc.
Mas, cadê o reconhecimento à Constituição?
Reflexão e debate, sem punição severa aos autores das discriminações, não fortalecem a tal constituição brasileira...