Postagem do intelectual e compositor Nei Lopes, em Meu Lote
A simpática senhora da foto acima, publicada na edição de nº 17 da Revista de História da Biblioteca Nacional, em fevereiro de 2007, é a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora da Universidade de Chicago e autora de várias obras fundamentais sobre a História dos índios e dos negros. Nascida em Portugal, filha de pais húngaros, judeus, formou-se em Matemática Pura, freqüentou o seminário de Lévi-Strausss e acabou por dedicar-se à antropologia. Na década de 1981, foi professora visitante em Cambrigde e na École des Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris.
Trata-se, portanto, de uma intelectual que merece o nosso maior respeito e nossa maior admiração. E foi ela que, na edição mencionada da RHBN (pág. 55), declarou, leiam com atenção, o seguinte:
“Sei que o grande argumento de quem é contra as cotas é que isso introduz ‘raça’ na lei, racializa a legislação. Mas ‘raça’ já existe no Brasil. Existe porque, pragmaticamente, ela está em funcionamento. E, certos momentos, ela até desaparece do censo, mas isso não a tira do universo social. O que eu quero dizer é que ‘raça’ é uma noção que opera e, portanto, existe no Brasil, mesmo que se conteste seu fundamento. Não adianta dizer que raça não é um conceito adequado; ele existe no senso comum e na sociedade, e produz os efeitos sociais e psicológicos que todos conhecemos”.
Trata-se, portanto, de uma intelectual que merece o nosso maior respeito e nossa maior admiração. E foi ela que, na edição mencionada da RHBN (pág. 55), declarou, leiam com atenção, o seguinte:
“Sei que o grande argumento de quem é contra as cotas é que isso introduz ‘raça’ na lei, racializa a legislação. Mas ‘raça’ já existe no Brasil. Existe porque, pragmaticamente, ela está em funcionamento. E, certos momentos, ela até desaparece do censo, mas isso não a tira do universo social. O que eu quero dizer é que ‘raça’ é uma noção que opera e, portanto, existe no Brasil, mesmo que se conteste seu fundamento. Não adianta dizer que raça não é um conceito adequado; ele existe no senso comum e na sociedade, e produz os efeitos sociais e psicológicos que todos conhecemos”.
recebido de Luiz Carlos Gá - galuizcarlos@yahoo.com.br
Manuela Carneiro da Cunha
01/02/2007
Entrevista
No princípio eram as estruturas matemáticas: nascida na cidade portuguesa de Cascais, Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha se formou em Matemática na França. A Antropologia só entrou em sua vida um pouco mais tarde – seu mestre foi ninguém menos que o francês Claude Lévi-Strauss. Poucos imaginam, mas Matemática e Antropologia têm muito em comum: “Lévi-Strauss só me aceitou porque eu era formada em Matemática”.
No Brasil, Manuela lutou pelo reconhecimento dos direitos dos índios na Constituição de 1988 e publicou verdadeiras obras de referência sobre História dos Índios. A antropóloga se diz a favor da política de cotas nas universidades. Afirma, porém, que o sistema necessita de um plano específico para os índios.
Professora da Universidade de Chicago, Manuela não abandonou o trabalho de campo na floresta amazônica. Em sua casa, no quatrocentão bairro paulistano do Pacaembu, conversou com a equipe da Revista de História e a antropóloga Lilia Schwarcz. Entre biscoitos recém-saídos do forno e sucos saborosos, Manuela não evitou temas amargos. Acredita que o governo brasileiro deve priorizar investimentos em ciência e tecnologia para a floresta em pé. As políticas de incentivo ao agronegócio, segundo a antropóloga, estariam promovendo um desenvolvimento nada sustentável no país: “Nós já arrasamos a Amazônia Oriental, agora é a vez da Amazônia Ocidental. Se a política é apenas atrelada ao agronegócio e se a noção de desenvolvimento é apenas o aumento do PIB, estamos perdidos...”
Revista de História - Da Matemática para a Antropologia foi um grande salto. Como isto aconteceu?
Manuela Carneiro Cunha - Formei-me em Matemática em 1967, na França. Meus professores eram de um grupo que usava o pseudônimo coletivo de Nicolas Bourbaki e pretendia refundar a matemática a partir de algumas estruturas básicas. Havia uma grande afinidade entre a matemática bourbakiana e o estruturalismo de Lévi-Strauss. Quando estava escrevendo seu primeiro grande livro, As Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi-Strauss consultou um grande matemático francês da velha escola, Hadamard, e perguntou-lhe se a formalização que estava propondo para as regras do casamento não seria passível de um tratamento matemático. Hadamard teria respondido: “Só conheço quatro operações: soma, subtração, multiplicação e divisão. Não vejo como o casamento se enquadra nelas”. Lévi-Strauss falou então com o André Weil, um matemático bourbakiano, que disse: “É claro que dá para matematizar isso”. E há um capítulo dele, dentro do Estruturas Elementares do Parentesco, que é uma matematização algébrica de sistemas de casamento australianos. Havia, portanto, uma afinidade óbvia entre o tipo de matemática que eu tinha feito e aquela na qual Lévi-Strauss se inspirava.
RH - E como você chegou até ele?
MCC - Lévi-Strauss me inspirava um terror sagrado. Uns amigos me encorajaram a marcar uma entrevista com ele para poder freqüentar o seu seminário. No dia, disse que era brasileira, mas ele só me aceitou porque eu era formada em Matemática.
RH - Começaram então suas pesquisas mais dirigidas à Antropologia?
MCC - É, só que eu não tinha estudado realmente Antropologia. Não tinha uma formação sistemática. Em 1970 voltei ao Brasil, e Lévi-Strauss me deu uma carta de recomendação: seria meu passaporte. Ouvi falar de um curso na Unicamp que estava começando e fui para lá. Foi ótimo aprender Antropologia Social britânica com Peter Fry e Verena Stolcke, um contraponto total ao que tinha lido até então. Meu primeiro artigo foi sobre a relação entre mito e história, a partir de um movimento messiânico que ocorreu entre os índios canela, do Maranhão, em 1963. Esse movimento anunciava que iria mudar a relação de forças entre os brancos e os índios: os índios teriam todos os bens industriais, seriam donos de fazenda, e os brancos iriam caçar na floresta. Entre os canela – como em praticamente todos os grupos indígenas de língua gê –, conta-se o mito de Aukê, sobre a origem dos brancos. Aukê é um menino índio que é morto e que reaparece como um fazendeiro ou como D. Pedro II. Ele pergunta para os índios e para os brancos que armas e que utensílios para comer eles preferem. Os índios escolhem o arco e os brancos, a espingarda. Os índios, a cuia, e os brancos, o prato. Esta seria a origem da desigualdade. No artigo, mostro que esse movimento messiânico se moldou em uma inversão estrutural do mito de Aukê, como se a história e a desigualdade fossem assim, por sua vez, se inverter também.
RH - Como é que o Brasil lida com a questão da preservação do patrimônio imaterial da cultura indígena?
MCC - A idéia de patrimônio histórico nacional – e do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – foi toda formulada e voltada para o patrimônio material, de pedra e cal. Mas no patrimônio imaterial, o importante mesmo é o processo, e o Estado só tem a tradição de legislar sobre produtos acabados. A cultura não é um produto, é um processo dinâmico que está em perpétua modificação. A grande dificuldade é preservar as condições de produção do patrimônio imaterial, como, por exemplo, o conhecimento tradicional. Às vezes, são coisas muito sutis.
RH - E como isso é visto na perspectiva dos índios?
MCC - Muita gente acha que, como a terra não é propriedade privada nas sociedades indígenas, tudo nessas sociedades é coletivo e comunitário, mas não é assim. No direito costumeiro dessas sociedades, há uma elaboração sobre patrimônio imaterial que pode nos parecer complexa. Por exemplo, os direitos sobre nomes, rituais, canções, danças nos grupos de língua gê, ou padrões de desenhos e nomes nos grupos de língua pano. Entre os gê, há toda uma economia dos nomes próprios. Você não pode dar qualquer nome a uma criança. Existe um acervo de nomes, e determinadas pessoas ou casas têm determinados direitos de usufruto ou de posse do nome. O patrimônio imaterial é regulamentado internamente em cada uma dessas sociedades.
RH - Como o Estado deve intervir nessas questões?
MCC - A proteção dos direitos intelectuais relativos ao conhecimento tradicional é fundamental e cabe ao Estado. Isto não quer dizer que se deva simplesmente estender direitos de propriedade intelectual – desenvolvidos e ampliados a partir do século XVII – às sociedades indígenas. Há mais de uma década se discute na ONU que mecanismos seriam mais apropriados. Fazer as sociedades tradicionais participarem das decisões e dos benefícios que advêm de seus conhecimentos sem interromper o processo de produção destes está longe de ser algo simples.
RH - Como é que você, tendo militado desde muito cedo nessa ação de defesa dos índios, vê hoje o movimento indigenista?
MCC - Os índios têm agora seus próprios movimentos, cada vez mais eficazes e organizados. As antigas associações pró-índio, de onde emergiu a maioria dos movimentos propriamente indígenas, não são mais seus porta-vozes ou intermediários. No entanto, acho que existem funções importantes que elas continuam a desempenhar. O Instituto Socioambiental, por exemplo, é um órgão extremamente importante de documentação, treinamento e apoio a projetos indígenas. A Comissão Pró-Índio do Acre teve e continua tendo um papel importantíssimo na questão da educação indígena, formou professores indígenas e agentes agroflorestais de forma excelente – pessoas capacitadas a desempenhar papéis importantes nas comunidades indígenas. Esses órgãos têm hoje papéis essenciais de assessoria. Quanto ao resto, os índios, cada vez mais, têm tomado as rédeas.
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/impressao.php?id=455&pagina=1
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=detalhe&id=455
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=edicao&id=8
01/02/2007
Entrevista
No princípio eram as estruturas matemáticas: nascida na cidade portuguesa de Cascais, Maria Manuela Ligeti Carneiro da Cunha se formou em Matemática na França. A Antropologia só entrou em sua vida um pouco mais tarde – seu mestre foi ninguém menos que o francês Claude Lévi-Strauss. Poucos imaginam, mas Matemática e Antropologia têm muito em comum: “Lévi-Strauss só me aceitou porque eu era formada em Matemática”.
No Brasil, Manuela lutou pelo reconhecimento dos direitos dos índios na Constituição de 1988 e publicou verdadeiras obras de referência sobre História dos Índios. A antropóloga se diz a favor da política de cotas nas universidades. Afirma, porém, que o sistema necessita de um plano específico para os índios.
Professora da Universidade de Chicago, Manuela não abandonou o trabalho de campo na floresta amazônica. Em sua casa, no quatrocentão bairro paulistano do Pacaembu, conversou com a equipe da Revista de História e a antropóloga Lilia Schwarcz. Entre biscoitos recém-saídos do forno e sucos saborosos, Manuela não evitou temas amargos. Acredita que o governo brasileiro deve priorizar investimentos em ciência e tecnologia para a floresta em pé. As políticas de incentivo ao agronegócio, segundo a antropóloga, estariam promovendo um desenvolvimento nada sustentável no país: “Nós já arrasamos a Amazônia Oriental, agora é a vez da Amazônia Ocidental. Se a política é apenas atrelada ao agronegócio e se a noção de desenvolvimento é apenas o aumento do PIB, estamos perdidos...”
Revista de História - Da Matemática para a Antropologia foi um grande salto. Como isto aconteceu?
Manuela Carneiro Cunha - Formei-me em Matemática em 1967, na França. Meus professores eram de um grupo que usava o pseudônimo coletivo de Nicolas Bourbaki e pretendia refundar a matemática a partir de algumas estruturas básicas. Havia uma grande afinidade entre a matemática bourbakiana e o estruturalismo de Lévi-Strauss. Quando estava escrevendo seu primeiro grande livro, As Estruturas Elementares do Parentesco, Lévi-Strauss consultou um grande matemático francês da velha escola, Hadamard, e perguntou-lhe se a formalização que estava propondo para as regras do casamento não seria passível de um tratamento matemático. Hadamard teria respondido: “Só conheço quatro operações: soma, subtração, multiplicação e divisão. Não vejo como o casamento se enquadra nelas”. Lévi-Strauss falou então com o André Weil, um matemático bourbakiano, que disse: “É claro que dá para matematizar isso”. E há um capítulo dele, dentro do Estruturas Elementares do Parentesco, que é uma matematização algébrica de sistemas de casamento australianos. Havia, portanto, uma afinidade óbvia entre o tipo de matemática que eu tinha feito e aquela na qual Lévi-Strauss se inspirava.
RH - E como você chegou até ele?
MCC - Lévi-Strauss me inspirava um terror sagrado. Uns amigos me encorajaram a marcar uma entrevista com ele para poder freqüentar o seu seminário. No dia, disse que era brasileira, mas ele só me aceitou porque eu era formada em Matemática.
RH - Começaram então suas pesquisas mais dirigidas à Antropologia?
MCC - É, só que eu não tinha estudado realmente Antropologia. Não tinha uma formação sistemática. Em 1970 voltei ao Brasil, e Lévi-Strauss me deu uma carta de recomendação: seria meu passaporte. Ouvi falar de um curso na Unicamp que estava começando e fui para lá. Foi ótimo aprender Antropologia Social britânica com Peter Fry e Verena Stolcke, um contraponto total ao que tinha lido até então. Meu primeiro artigo foi sobre a relação entre mito e história, a partir de um movimento messiânico que ocorreu entre os índios canela, do Maranhão, em 1963. Esse movimento anunciava que iria mudar a relação de forças entre os brancos e os índios: os índios teriam todos os bens industriais, seriam donos de fazenda, e os brancos iriam caçar na floresta. Entre os canela – como em praticamente todos os grupos indígenas de língua gê –, conta-se o mito de Aukê, sobre a origem dos brancos. Aukê é um menino índio que é morto e que reaparece como um fazendeiro ou como D. Pedro II. Ele pergunta para os índios e para os brancos que armas e que utensílios para comer eles preferem. Os índios escolhem o arco e os brancos, a espingarda. Os índios, a cuia, e os brancos, o prato. Esta seria a origem da desigualdade. No artigo, mostro que esse movimento messiânico se moldou em uma inversão estrutural do mito de Aukê, como se a história e a desigualdade fossem assim, por sua vez, se inverter também.
RH - Como é que o Brasil lida com a questão da preservação do patrimônio imaterial da cultura indígena?
MCC - A idéia de patrimônio histórico nacional – e do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – foi toda formulada e voltada para o patrimônio material, de pedra e cal. Mas no patrimônio imaterial, o importante mesmo é o processo, e o Estado só tem a tradição de legislar sobre produtos acabados. A cultura não é um produto, é um processo dinâmico que está em perpétua modificação. A grande dificuldade é preservar as condições de produção do patrimônio imaterial, como, por exemplo, o conhecimento tradicional. Às vezes, são coisas muito sutis.
RH - E como isso é visto na perspectiva dos índios?
MCC - Muita gente acha que, como a terra não é propriedade privada nas sociedades indígenas, tudo nessas sociedades é coletivo e comunitário, mas não é assim. No direito costumeiro dessas sociedades, há uma elaboração sobre patrimônio imaterial que pode nos parecer complexa. Por exemplo, os direitos sobre nomes, rituais, canções, danças nos grupos de língua gê, ou padrões de desenhos e nomes nos grupos de língua pano. Entre os gê, há toda uma economia dos nomes próprios. Você não pode dar qualquer nome a uma criança. Existe um acervo de nomes, e determinadas pessoas ou casas têm determinados direitos de usufruto ou de posse do nome. O patrimônio imaterial é regulamentado internamente em cada uma dessas sociedades.
RH - Como o Estado deve intervir nessas questões?
MCC - A proteção dos direitos intelectuais relativos ao conhecimento tradicional é fundamental e cabe ao Estado. Isto não quer dizer que se deva simplesmente estender direitos de propriedade intelectual – desenvolvidos e ampliados a partir do século XVII – às sociedades indígenas. Há mais de uma década se discute na ONU que mecanismos seriam mais apropriados. Fazer as sociedades tradicionais participarem das decisões e dos benefícios que advêm de seus conhecimentos sem interromper o processo de produção destes está longe de ser algo simples.
RH - Como é que você, tendo militado desde muito cedo nessa ação de defesa dos índios, vê hoje o movimento indigenista?
MCC - Os índios têm agora seus próprios movimentos, cada vez mais eficazes e organizados. As antigas associações pró-índio, de onde emergiu a maioria dos movimentos propriamente indígenas, não são mais seus porta-vozes ou intermediários. No entanto, acho que existem funções importantes que elas continuam a desempenhar. O Instituto Socioambiental, por exemplo, é um órgão extremamente importante de documentação, treinamento e apoio a projetos indígenas. A Comissão Pró-Índio do Acre teve e continua tendo um papel importantíssimo na questão da educação indígena, formou professores indígenas e agentes agroflorestais de forma excelente – pessoas capacitadas a desempenhar papéis importantes nas comunidades indígenas. Esses órgãos têm hoje papéis essenciais de assessoria. Quanto ao resto, os índios, cada vez mais, têm tomado as rédeas.
http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/impressao.php?id=455&pagina=1
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http://www.revistadehistoria.com.br/v2/home/?go=edicao&id=8
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Memória Lélia Gonzalez traz essa entrevista para o Blog também como uma especial homenagem à Professora Manuela Carneiro da Cunha por ter aceitado Lélia Gonzalez como sua orientanda, na época em que Lélia decidiu atravessar madrugadas nos ônibus Rio-SãoPaulo-Rio, para o curso de Doutorado na USP.
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