sábado, 4 de abril de 2009

Risério fala sobre pobreza no espaço urbano


Antonio Risério*
De Salvador (BA) - Sexta, 3 de abril de 2009, 07h49

Vai com atraso, mas é que não quero ficar repetindo o que já disse...

Entrevista a Mário Kertész
(Revista Metrópole, n. 17, novembro 2008)

A pergunta que eu quero fazer, um pouco simbolicamente, é a seguinte: nós estamos mais para Bombaim ou para Nova York? Eu falo da cidade do Salvador, que tem crescido muito, inclusive em termos populacionais, nos últimos anos.

A pobreza de Salvador pode ser vista até por um marciano, pode ser vista de satélite. Eu tenho até vontade de fazer esse levantamento. Você pega o número de pobres da cidade, pega o número de ricos e vê a extensão do espaço urbano que eles ocupam. Nas áreas mais pobres, quantos habitantes têm por quilômetro quadrado, com as favelas verticalizadas, com as casas coladas umas nas outras? E quantos habitantes por quilômetro quadrado nas áreas ricas, nos prédios ou nos condomínios de luxo, com áreas de lazer, piscinas, quadras esportivas? Deve ter área pobre aí com milhares de habitantes por quilômetro quadrado e áreas ricas com apenas algumas dezenas. Se a gente fizer um levantamento desses, vai ter um retrato preciso e brutal de como a pobreza se expressa em cada centímetro do solo da cidade. As pessoas podem dizer que alguns índices melhoraram. É provável que sim, os índices melhoraram no país todo. A qualidade do emprego também parece que tem melhorado. Isso pode ser importante no plano individual, porque a pessoa que passa a ter um emprego melhor, realmente muda de vida. Mas, em conjunto, é uma melhorazinha insignificante, porque a pobreza continua imensa. Há 11 anos seguidos, Salvador sempre apresenta a mais alta taxa de desemprego entre as capitais brasileiras. Esse título ninguém toma da gente. Nós somos imbatíveis na incompetência para gerar emprego. Outro dia, o secretário do Trabalho estava falando de boca cheia na mídia que, no ano passado 120 mil postos de trabalho foram criados na Bahia. Isso é ridículo. É uma cifra pro governo se envergonhar. Com a população que a Bahia tem, uma cifra dessas não significa nada. Poderia até significar alguma coisa se fosse só em Salvador, onde a gente tem sido tradicionalmente incompetente na geração de emprego e renda. A Bahia não tem se desenvolvido porra nenhuma. Basta comparar com Pernambuco, em todos os aspectos, em projetos, ações, os próprios recursos do PAC. Pernambuco com porto, refinaria, estrada e tal. A Bahia, porra nenhuma. Salvador também não tem crescido nada. De outra parte, tem também uma coisa: a gente festeja o que não tem que festejar. Fala dos índices da educação, do aumento dos números da escolaridade. Não aumentou o número da escolaridade, aumentou a produção de analfabetos boçalizados por uma formaturazinha qualquer. Analfabetos de canudinho, que não sabem porra nenhuma. Ainda tem uma outra coisa, que é o lance da pobreza aqui. Embora seja muito visível, a pobreza baiana engana. Você vê o retrato da pobreza na África e na Ásia. São corpos esquálidos, esqueléticos. Aqui, não. Outro dia, um amigo meu, Luiz Chateaubriand, que pesquisa essas coisas, me disse assim: a pobreza baiana é uma pobreza gorda. É verdade! Agora, essa gordura vem de onde? Vem de uma alimentação de merda, de péssima qualidade. Então, quando o Chateaubriand vê um gordo passando na favela, ele fala: "lá vai ali um sujeito explodindo de pobreza". 150 quilos de miséria. Enfim, eu acho que Salvador é um escândalo social. É evidente que a gente está cada vez mais próximo de cidades como Lagos. Não é afro só no Olodum e no Ilê Aiyê, não. É africana na miséria.

Por outro lado, nossa elite, inclusive a chamada elite intelectual, a elite que tem acesso aos meios de comunicação, que dirige jornais e televisões, alguns políticos, ficam sonhando ou pensando que é possível transformar Salvador em Nova York, Zurique... Uma cidade bonita, ordenada, sem barraca de praia, sem restaurantes no meio da rua, sem os cacetes armados, sem os camelôs. Sim - e o que a polícia administrativa, que no caso é a prefeitura, pode fazer para realizar o sonho dessa elite, que se manifesta até nos nomes dos novos empreendimentos imobiliários, tipo Manhattan Square, Vale do Loire, etc.?

Em primeiro lugar, eu acho que a gente deveria perguntar o que a polícia pode fazer com essa elite. Porque essa elite infringe todas as regras, não tem educação urbana, não tem uma visão do significado dessa cidade. Na verdade, eu acho uma coisa muito grave. Acho que a atual população de Salvador não está à altura da cidade que herdou. Não está à altura da cidade que recebeu. É por isso que está avacalhando a cidade a cada dia que passa. Salvador é uma cidade cada vez mais maltrada, mais feia. E tem uma elite desinformada, provinciana, mimética. Eu vivi minha adolescência na cidade de Jorge Amado, Vivaldo da Costa Lima, Pierre Verger, Carybé. E hoje é a cidade de quem? De Nizan Guanaes? Da axé music? Do Chiclete com Banana? Do prefeito que temos? Dos quadros políticos atuais? Esse é um drama da gente, hoje. Salvador é atualmente uma cidade grande, onde todo mundo pensa pequeno. Empresários, políticos, intelectuais, artistas... todo mundo. Quanto mais a cidade cresce, mais o pensamento é menor, se é que a gente pode falar de pensamento. Salvador não é só a capital do desemprego, é a capital da desinformação, da subcidadania. Agora, o que a prefeitura vai fazer? A prefeitura não destoa em nada disso, pelo contrário, ela própria é promotora da depredação de Salvador. Ela vem avacalhando a cidade sistematicamente. Eu acho que o prefeito de Salvador, antes de assumir o cargo, devia tomar um curso básico sobre o que é Salvador, sobre o significado dessa cidade. E essa elite de que você fala, com seus prédios esteticamente ridículos, não sabe onde vive. E eu fico triste, porque não vejo ninguém preocupado em encontrar soluções para isso, ninguém pensar a cidade em seu conjunto. Salvador virou um vilarejo com elefantíase e só tem programazinhos pontuais. Ela é administrada como uma cidade do interior. Essa elite, que quer escorraçar os pobres, é a mesma que não sabe se comportar com relação ao espaço urbano. E também invade calçadas e terrenos públicos. A gente precisa de uma grande polêmica, uma grande discussão, hoje, em Salvador.

É isso que é complicado. Quando tento provocar isso, fica parecendo muito uma birra pessoal, porque poucas são as vozes que se juntam. Tivemos uma série de administrações municipais desastrosas. E hoje também não há nenhum pensamento crítico em relação a Salvador. A mesma coisa acontece, infelizmente, em relação ao Governo do Estado da Bahia, não é? Fica lá nosso querido amigos Jaques Wagner, com toda amizade e tal, mas e aí? Qual o projeto que a Bahia tem? Não se discute, não há debate. Como é que a gente provoca esse debate?

É difícil provocar, mas eu queria falar uma coisa antes. Quando você fala que não há um projeto de cidade, não há. O que você esperaria, por exemplo, em uma eleição como a que acabou de acontecer, com um segundo turno disputado por candidatos que supostamente teriam visões diferentes da cidade? O que era de esperar é que estivessem em jogo, ali, duas concepções distintas de Salvador, dois modelos distintos de cidade, dois modos diversos de pensar o problema urbano e de ter programas pra ele. Não, os dois candidatos eram absolutamente idênticos. Um dizia que podia gerenciar melhor que o outro. Não havia formulação nenhuma, nenhum pensamento. Eram dois subgerentes iguaizinhos, que, em matéria de conhecimento de Salvador, são muito provavelmente incapazes de distinguir entre uma orquídea e um extintor de incêndio. Chegamos a esse grau tão baixo. O debate está cada vez mais difícil, também, porque está todo mundo muito satisfeito. Isso já vem há tempos. Primeiro, não há pensamento. Segundo, não há espaço na mídia pra essas discussões. Terceiro, eu não sei se as pessoas estão realmente interessadas nessas discussões. E se têm preparo para isso. Eu não acredito que a Câmara de vereadores, que as pessoas que andam badalando por aí, estejam preparadas para uma sabatina sobre Salvador, em qualquer aspecto da vida da cidade. O debate aqui está atravancado em todas as áreas e por ausência de pensamento. As pessoas dizem que, quando aumenta o grau de escolaridade, vem a ascensão social, a nova classe média e tal. O que você espera teoricamente é que a ascensão social aumente o grau de exigência com relação aos serviços públicos, ao funcionamento da cidade. Você espera que se modifique o trato com a cidade. Mas isso é só teoricamente. Porque a elite, que já está lá em cima, não sabe tratar da cidade. Essa ascensão social é importante, sim, no plano do indivíduo e mesmo no do conjunto. Agora, o que a gente chama hoje de nova classe média, de ascensão social, é o seguinte: o sujeito que era fodido e meio, agora é só fodido. Não altera muita coisa. As pessoas acham que, botando o bolsa-família, uma grana e tal, o sujeito vai experimentar uma mudança. O Jessé Souza está certo. Isso é uma visão muito primária, muito economicista. Porque você dá um dinheirinho para complementar a renda familiar, mas não dá condições culturais, morais, espirituais pras pessoas romperem o círculo de ferro da subcidadania. As empregadas domésticas continuam sendo treinadas para vender o corpo, combinam isso com o bolsa-família, não têm como transcender esse horizonte. Então, essa ascensão social não vai modificar culturalmente a situação. Vai continuar sendo a estética-feira-de-santana, na qual foi criada nosso atual prefeito, que é a cultura do cacete armado, a cultura do armengue, a incapacidade de distinguir formas, de lidar com os elementos da cidade. No caso da elite, é engraçado. Porque ela quer que as coisas se modifiquem, mas em função dela, não em função da cidade. Não se trata de pensar em termos de soluções urbanas para a cidade, de discutir mobiliário urbano, de melhorar os serviços da cidade. Trata-se de melhorar o circuito de cada um, a cidade que se foda. E ficam fazendo de conta que estão morando não sei onde, botam nome francês no prédio, mas estão morando num favelão. E têm o mesmo nível mental que esses analfabetos que nossas escolas estão formando, porque nem sabem falar português direito. Então, fica difícil debater sem interlocutores. A cidade poderia ter muitos mecanismos de voz para as pessoas se expressarem, tem mais do que antigamente até, mas onde está o pensamento que essa voz vai ter?

Mas Salvador se prostituiu muito e se transformou numa cidade tida como o turismo sendo o grande gerador de emprego e renda e, portanto, tudo ao turismo. O carnaval de Salvador sendo louvado como a maior e mais democrática festa do planeta. Para mim, ela não tem nada disso. Você vê a gente sendo vendido e louvado, também, por uma classe média paulista que adora vir para cá, adora ter um apartamento aqui no Corredor da Vitória, fazer festas e essas coisas. Como é que isso bate na vida de Salvador, nos últimos anos?

Antigamente, eu fazia uma comparação. Dizia que Salvador era suja e desleixada, mas com uma coisa sofisticada. São Paulo, ao contrário, era o reino da grossura, mas onde tudo era bem tratado. Isso passou. Salvador continua desleixada, mas perdeu a sofisticação. Hoje, ela junta o que havia de pior em São Paulo com o que havia de pior aqui. É o casamento da grossura com o maltrato, o desleixo. O carnaval, eu acho que não existe mais. Existe uma festa aí que, por comodidade, a gente continua dando o nome de carnaval. Numa situação em que nem consegue ser o superespetáculo do carnaval carioca, nem uma festa de participação popular, como é o carnaval de Pernambuco. Essa é a miséria do carnaval local, nesse sentido de que virou uma porção de discotecas, chamadas camarotes, vendo shows de bandas. E, também nesse caso, não foi preciso chamar a polícia administrativa. Foi o próprio poder econômico da elite que escorraçou o povo das ruas.

Como é que você vê o fato de Recife continuar tendo um carnaval de intensa participação popular? Os blocos imensos, sem cordas, como é que funciona, qual a diferença?

Eu acho que a gente pode pensar isso num quadro maior. Compare as associações comerciais e as federações da indústria da Bahia e de Pernambuco. Lá, você tem projetos, programas, tem ação, tem pensamento - aqui, você não tem nada. O empresariado baiano, o governo e tal, eles passaram um ano, sei lá, à espera da Toyota. Parecia um messias: era a fábrica redentora que vinha. A Toyota não veio. E aí? Nada. Vamos passar a outro plano, o da atuação do poder executivo. Eu me referi às obras do PAC, ao governo de Pernambuco com projetos, fazendo coisas. Pernambuco está tendo uma efervescência, nesse sentido de discussões do futuro do estado, da construção de uma refinaria, da montagem de uma infra-estrutura. Pernambuco, até poucas décadas, não era mais do que um engenho. E a Bahia, industrializada. Agora, Pernambuco está passando a Bahia. Em todas as áreas. Pegue a música pernambucana, manguebeat, etc. É mais criativa, mais preocupada com a realidade local, mais empenhada na vida pernambucana. Compara no cinema. A criatividade do cinema pernambucano e esse narcisismo de província que é o cinema que se faz hoje na Bahia. Compare, então, no carnaval. Pernambuco mantém um carnaval vital, criativo, popular. Quer dizer, em todos esses planos, a Bahia ficou para trás. O ritmo de que ela tanto se orgulha... a Bahia perdeu o ritmo. Acho que hoje o engajamento do habitante de Olinda e Recife, com Olinda e Recife, é qualitativamente diferente de uma certa indiferença que você vê em Salvador. O sujeito, aqui, está preocupado com o seu condomínio, a sua barraca de praia. Nós destruímos a orla, nós estamos esculhambando a cidade. É por isso que eu digo que a atual população de Salvador não está à altura da cidade. Isso já vem há tempos. Eu me lembro de uma campanha publicitária de Salvador, na época dos 500 anos do Brasil, que era pra ter uns outdoors no Rio e em São Paulo. Uma agência aqui me chamou e nós fizemos uma peça, onde a gente dizia o óbvio: "Salvador: uma cidade que começou a existir, para que o Brasil existisse". E é isso o que Salvador é. Mas o cliente na época, o poder público local, achou que era muito pretensioso. Como é que pode ocupar o cargo uma pessoa que não sabe o significado do lugar que dirige? Não, a propaganda teve que ser assim: Salvador, há 500 anos, sei lá, 300 dias de sol, festa, etc.

De carnaval de gente bonita...

Carnaval de gente bonita!

É, porque aqui, no carnaval, só se fala disso. O camarote estava cheio de gente linda, de gente bonita...

Parece piada, né? E então como é que você vai ter debate, entre arquitetos, alguns empresários, intelectuais, artistas? Você vai num camarote e eles estão todos lá! Eles são iguais àquilo, fazem parte daquilo, eles são aquilo. Mais do que objetos de debate, eles devem ser objetos de combate. Precisam de uma crítica severa e dura. Como é que eles podem discutir o carnaval, se eles são os camarotes? Como é que podem discutir os problemas urbanos de Salvador, se eles são a Vitória? Eu digo "são a Vitória" no seguinte sentido: Salvador sempre foi uma cidade lindamente dividida em dois andares. Aqueles edifícios enormes na Vitória detonaram a linha que dividia Salvador em duas. E agora Salvador não tem mais esse negócio de dois andares. Destruíram o desenho da cidade. Então, é difícil debater porque essas pessoas são a merda que a gente está criticando. E eu digo todas, no poder público, entre os intelectuais, entre os técnicos. Elas são isso, elas são a cara da Salvador de hoje e é por isso que eu digo que a população atual de Salvador não está à altura da cidade que herdou. Ela é essa Salvador avacalhada.

Você acha que há um processo de acomodação generalizada, no sentido de: "olha, bota a sujeira toda debaixo do tapete e não vamos discutir"?

O problema é que não dá pra colocar a sujeira debaixo do tapete porque a sujeira é muito maior do que o tapete.

Eu também acho isso, e cada vez maior, né?

E vai ser sempre maior se continuar do jeito que está. As pessoas falam da violência urbana, por exemplo, e se protegem nos condomínios. Violência urbana não tem nada a ver com pobreza, apenas. Em nossa adolescência, nós vivemos numa cidade pobre, mas que tinha trato urbano, civilidade, uma cidade que não tinha violência. A violência não é fruto da pobreza. Ela é fruto da desigualdade extrema, quando o povo é escorraçado. Quanto mais as desigualdades se acentuam, mais violência elas produzem. O medo que as pessoas sentem do espaço urbano é o medo que elas sentem de um espaço urbano que foi criado por elas. Foi criado pela estupidez e a ganância da elite. Ela criou uma situação em que ela foi expulsa das calçadas. E agora, para poder andar nas calçadas, ela tem que expulsar os pobres dali. Porque os pobres ocuparam o espaço urbano. E não há alternativa. O cara vai batalhar dinheiro é na sinaleira mesmo. E não adianta vir com bolsinha compensatória de 100 reais. Porque, se você batalha dinheiro numa sinaleira, ganha mais do que isso por mês. Os pobres, impedidos de desfrutar as belezas e os benefícios que a cidade tem e produz, eles vão tomar isso. Você tem hoje uma situação de "barrados no baile". Grande parte da população está barrada no baile. A classe média, regra geral, aceita ser barrada no baile, limita-se a um muxoxo dentro de casa, a uma tristeza. É uma resignação amargurada e silenciosa. Os mais pobres, não. Muitos deles não estão a fim de ficarem barrados no baile e não vão ficar resignados ou calados como a classe média. Eles vão sujar o baile. O Bauman viu isso. Porque lá dentro está rolando uma puta festa, com salgadinho, champanhe. E, ainda mais, com uma ideologia dominante muito cruel de que o êxito é o consumo. Hoje, quando você não tem dinheiro para participar do baile, isso não quer dizer só que você não tem dinheiro. Quer dizer que você fracassou como indivíduo, desde que o ser humano se realiza no consumo. A gente vive hoje numa sociedade em que o que se incrementa é a competitividade. As pessoas têm que estar preparadas para competir no mercado. Mas competir para quê? É a competição pela competição, é o êxito pessoal, é ter acesso ao baile. Agora, muito pouca gente tem acesso ao baile. E, enquanto a classe média vai ficar se lamentando, fazendo grevezinhas ocasionais, os outros vão como na música de Cazuza: "meu cartão de crédito é a navalha".

Tem um outro dado aí que é o tráfico de drogas, consumo e tráfico de drogas, que gera muito dinheiro...

E emprego.

Pois é, a economia informal da cidade gera mais que a formal... E gera muita violência em cima disso, muita repressão policial, muita corrupção. Corrupção policial, corrupção política, corrupção da Justiça. Como esse elemento, que não existia e que agora é cada vez mais forte em Salvador, pode mexer e já está mexendo no quadro em que a gente vive?

Não acho que o negócio das drogas tenha criado um "Estado paralelo", como falam. Pode até ter formas fragmentárias de atuação de tipo estatal, coisas filantrópicas, até tribunais e tal. Mas nem chega a ser uma organização para-estatal. É apenas um empresariado ilegal e o que você tem são grupos armados disputando espaços de mercado. Nem tem também essa história de guerra civil. Guerra civil é quando uma classe ou uma etnia, por exemplo, enfrenta outra, por questões econômicas, ideológicas, etc. Você tem mesmo é disputa de mercado, numa situação de ilegalidade. O tráfico oferece ao jovem pobre, além de aventura e risco, coisas que a juventude adora, dinheiro e acesso ao consumo. Você fica vendo o tempo todo, nas novelas da Globo, aquele padrão de vida ali... e vai ter acesso àquilo como? Ou tomando ou traficando, não há muitos caminhos. Não temos política educacional, a política de inclusão social ainda é muito fraca, não tem inclusão cultural, não tem nada. A periferia é abandonada e é um prato cheio, claro, para o tráfico. Com um agravante, hoje, que é o seguinte. Antes, a gente falava que o que distinguia o tráfico no Brasil era a base territorial. É um traço específico da bandidagem brasileira. Uma quadrilha controlava um morro no Rio, por exemplo, que então era fechado a outras quadrilhas. Aqui, também. Era a partir da base territorial que se negociava. Era isso que fazia, por exemplo, com que o crack não entrasse no Rio. Mas esse ano a gente viu que esse negócio foi detonado. O PCC passou a controlar financeiramente o tráfico carioca. Então, essas bases territoriais não existem mais. Continuam sob controle, mas não são fechadas ao jogo financeiro. O que existe hoje são redes de empresas do tráfico, sediadas em São Paulo, como as grandes empresas legais. Esse empresariado paralelo está no país todo e de forma organizada. Agora, para lidar com isso a gente também não pode ser hipócrita. É o óbvio: se existe tráfico, existem consumidores. Um sujeito que cheira pó, num apartamento de luxo na Vitória, não tem autoridade nenhuma para falar de tráfico e violência urbana. Ele tem que se ver como cúmplice, como partícipe do processo. Sem ele, o tráfico de drogas não existiria. Muita gente não tem consciência disso, fala como se o tráfico fosse uma coisa distante. Não é. Nós fazemos parte desse circuito comercial. Nós fazemos parte estruturalmente do tráfico de drogas. Nós somos o mercado.

O fato de ser uma briga territorial faz com que determinadas áreas das cidades, inclusive aqui em Salvador, sejam totalmente dominadas. Não entra polícia, nem serviços públicos, nem nada. Como se fosse um território estrangeiro.

E que foi criado graças à complacência dos poderes públicos, que nunca quiseram lidar com isso, sempre pactuaram, permitiram, e isso alimentado pelo conjunto da sociedade. Agora, é o seguinte. Essas bases territoriais distinguem o tráfico brasileiro do tráfico de Londres ou Nova York, por exemplo, onde você tem tráfico, mas não tem base territorial. E isso é uma coisa terrível aqui. Porque, com a base territorial, você tem comunidades controladas e pessoas que já nascem naquilo, né? Todo mundo sabe disso no Rio, mas não vejo ninguém discutindo isso em Salvador. Você vê como as coisas estão reduzidas aqui. Em relação a tudo. Passei esse ano em São Paulo e não tinha uma semana que eu não recebesse um manifesto para assinar. Aí você pensa, é a sociedade civil se movimentando e tal. Mas tudo era manifesto para preservar alguma coisa. Claro que há coisas há serem preservadas. Mas nem sempre era o caso. Não tem mais critério. Eu digo: até fogareiro de baiana do acarajé virou monumento histórico. Só tinha preocupação preservacionista e nenhum projeto para o presente ou para o futuro? Por outro lado, até entendo. As intervenções no espaço urbano de Salvador têm sido tão desastrosas que você se sente inclinado a preservar até tampinha de guaraná. Mas a cidade não pode ficar paralisada. Isso aqui precisa de uma puta sacudida. De onde, não sei.

Talvez do tráfico...

Vamos ver se essa meninada aí vem com alguma coisa. O que resta à gente é tentar transformar o que é possível transformar. Mas é difícil. Você apresenta um projeto, acham maravilhoso, mas não vai pra lugar nenhum. Nós estamos vivendo no reino da lábia.

O que é o reino da lábia?

Todo mundo fala, acha ótimo, faz um barulho, mas fica só nisso. Parece psicanalista, que acha que resolve tudo na conversa. Aqui, as pessoas conversam sobre um assunto e acham que o assunto foi resolvido. A conversa não é uma preliminar pra encarar o problema. O problema já se resolve na conversa. Quer dizer, a conversa é um âmbito auto-suficiente onde as coisas se resolvem. Deveria se fazer aqui o que o governador de Brasília fez. Proibiu o gerúndio: estamos fazendo, estamos construindo, estamos dando... Sempre estamos dando alguma coisa, mas cadê a coisa?

E aqui ainda tem esse negócio de colocar a "pedra fundamental" de uma coisa que ainda se vai construir...

Então, o que está faltando é a pedrada fundamental.

* Antonio Risério é poeta e antropólogo.
Fale com Antonio Risério: ariserio@terra.com.br

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